Subiu as escadas duas a duas. Havia de subi-las três a três, como quando era menina, mas à primeira experiência descobrira que de menina só lhe sobrava a memória.
O terraço continuava soalheiro e as floreiras mantinham luxuriantes sardinheiras, enquadradas por grades pintadas de um verde que em tempos fora escuro. A fechadura da porta da cozinha cedeu ao rodar da chave com um estalido grave, acompanhado pela agudez do chiar das dobradiças. Esbofeteou-a o odor acre. Porque doíam, os cheiros que agora se instalavam onde outrora havia o aroma dos biscoitos de laranja e canela, dos assados de Domingo, da roupa acabada de passar a ferro. A cozinha, sempre cheia de taças com fruta, cambos de cebolas e alhos pendurados em ganchos nas paredes, ao lado dos chouriços curados em longos fumeiros de Inverno, esvaziara-se. Os ganchos vazios projectavam uma sombra ameaçadora nos azulejos brilhantes à luz branca da florescente. O longo corredor que leva aos quartos e à sala grande (Ah! A sala grande dos Natais em família! Quantos risos de meninos e sons de conversas felizes guarda!) tem que ser percorrido apalpando as paredes. Fundiram-se as lâmpadas dos apliques. Entra no seu quarto. Continua tudo igual. Nas molduras que habitam a cómoda, os jovens mantêm-se jovens, os meninos ainda são meninos e os que morreram continuam vivos. Abre, a custo, as contras das janelas, empenadas pela falta de uso. Libertas, as janelas filtram o sol da tarde que ainda vai curta. Roda-lhes o fecho e deixa entrar a vida toda: pássaros chilreantes, grilos e ralos cantores, a mãe a chamá-la para o lanche de leite com cevada e pão com geleia, e ali, bem ao alcance das suas mãos, a nespereira. Sim, a mesma que sabem dar frutos amarelos e suculentos, em cujo tronco se recosta uma velha e cansada escada de madeira.
viajei muito longe nas tuas palavras. Obrigado.
ResponderEliminarbeijos Tutu
O "nosso" tempo...
EliminarBeijocas, Stormy :)
(eu é que agradeço as tuas palavras)
revejo-me tanto aqui, Maria :)
ResponderEliminarbeijinho
Regressar onde se foi feliz e saber, ainda, dessa felicidade.
EliminarBeijos, Laura :)
Há uma altura em que se nota que os espaços estão cheios de vazio.
ResponderEliminarUm bom domingo, M. E.
E, porém, se olharmos com cuidado, ou se abrirmos a janela certa, eles enchem-se.
EliminarBoa noite, Xil, e um bom fim-de-semana :)
com este texto viajei até à minha infância.
ResponderEliminarobrigada.
:)
bjinhos
Eu é que agradeço a visita e as palavras.
EliminarBeijos, A. :)
Doces memórias Maria que hoje ao ver os vazios acabaste de recordar. A vida é assim...
ResponderEliminarBeijinho
A vida é assim, tens razão, uma tela onde se redesenham memórias.
EliminarBeijos, GM :)
Apetece pensar que, um dia, ainda se volta a encher de gente que fará companhia às memórias.
ResponderEliminarEncher-se-á certamente, Luísa!
EliminarBeijos :)
Memórias, saudades, tudo se liga, bjs amiga, boa semana
ResponderEliminarAté lágrimas e sorrisos. :)
EliminarBeijos, Zulmira, e um bom fim-de-semana :) :)
Teus textos
ResponderEliminarconduzem à memória de outros tempos
e subo as escadas a três e três
chegado
ao patamar, sorrio
sinto-me melhor que tu, sinto-me menino
Agora a sério
lá dentro, a casa meio-cheia
enquanto outros não chegam
(as imagens andam, sem disfarce, pelo "face")
E também é bom esperar...
EliminarBeijinhos, Rogério :)
De volta para o aconchego como cantava Elba Ramalho?
ResponderEliminarBoa semana
Um aconchego que tarda.
EliminarBeijinhos, Pedro :)
tal como aporta da cozinha cedeu ao rodar da chave com um estalido, aconteceu-me o mesmo, nesta leitura. rodei nas lembranças, e o estalido foi forte.
ResponderEliminarbeijo, Maria Eu.
Boa semana,
Mia
Relembrar tem um sabor especial.
EliminarObrigada, Mia!
Beijos e um bom fim-de-semana :)
Um texto muito bem narrado que me fez voltar à infância com todos os assombros e fantasmas...
ResponderEliminarUma boa semana.
Beijos.
Temo-los todos, esses assombros e fantasmas, Graça.
EliminarObrigada!
Beijos e um bom fim-de-semana :)
Memórias que se colam à pele como se fossem calor num dia de sol. E a nespereira!... Não me esqueci porque também lhe trepei, tão só pelo oiro que brilhava no topo.
ResponderEliminarE a gente no topo topa coisas inusitadas "nas molduras que habitam a cómoda, os jovens mantem-se jovens".
Belíssima narrativa. Para levitar artroses?
Por estes dias nascerá um menino
que dizem divino
sem consultas pré-natais
amniocentese ecografias
e outras coisas mais
Bj, Maria (tu).
Pelo Natal, as memórias avivam-se com particular agudez.
EliminarMuito obrigada, Agostinho!
Beijinhos e votos de muita saúde :)
É sempre um sabor agridoce voltar ao chão da nossa infância. Acabamos sempre por nos vestir de saudades...
ResponderEliminarObrigada pela viagem, apesar de tudo "a boa filha a casa torna"!
Beijino*
Dás-me a mão, Flor? Entramos juntas!
EliminarObrigada!
Beijos :)
Muita paz e saúde no natal e em todos os dias do ano! Que o verdadeiro sentido do amor seja presente em todos os momentos, sempre! Felicidade. Ives Vietro
ResponderEliminarMuito obrigada, Ives! Os meus votos de um Natal muito feliz!
EliminarBeijinhos :)
E de repente a casa encheu-se novamente.
ResponderEliminarQue texto maravilhoso.
Obrigada, Cuca. Muito
EliminarO espírito do Natal, embora tímido, desperta doces memórias.
Beijos :)