sexta-feira, janeiro 29, 2016

Memórias de Vergílio


Lembra-se como se fosse hoje. A mãe dissera-lhe que era preciso, que já não sabia acompanhá-la nos "estudos", que era melhor assim. E vira-se, aos doze anos, dentes cerrados e olhos muito abertos para que as lágrimas não viessem (vieram na mesma, afinal), no átrio escuro que dava para a pesada porta de madeira do colégio a ver descerem uma mala enorme onde vinham lençóis, cobertores, atoalhados e roupa sua, tudo com um número cosido, 28, aquele pelo qual respondia nas chamadas. 
A chamada era coisa para ser repetida vezes sem fim ao longo do dia. Chamada para a fila de saída do dormitório, chamada para a entrada da sala de estudo, chamada para o refeitório, chamada a cada início de aula, chamada para as raras saídas ao exterior. 
Fazia-se número com raiva dentro e chorava mas só deixava o choro vir, silencioso, na calada da noite, quando nas vinte camas de ferro alinhadas em duas filas de dez, frente a frente, dormiam dezanove meninas e ela velava. Nessas horas escuras em que a almofada se encharcava, olhava de quando em vez para a divisória à entrada, onde a freira que calhara tomar conta "das dos dez aos treze" roncava com tanta fúria que mais lhe parecia saída de um pesadelo.
Habituou-se, com o passar dos dias, a fechar os olhos com muita força e a imaginar que estava num conto em que todas as meninas eram irmãs felizes e a freira um bicho que as vinte tinham capturado nos jardins luxuriantes da casa vizinha, fechada numa jaula e, assim, impossibilitada de passear pelo meio das suas camas durante a noite, murmurando padre-nossos e avé-marias. Nesse pressuposto, adormecia.

Foi num desses dias, ainda mal fizera treze anos, autorizada a ir visitar a tia Ana, que descobriu "Manhã submersa" e, mesmo não entendendo plenamente tudo o que lia, se achou personagem de Vergílio Ferreira.


18 comentários:

  1. "Eu vivia, de resto, agora, e cada vez mais, da minha imaginação. E foi por isto a partir de então que eu descobri a violência da realidade. Nada era como eu tinha fantasiado e não sabia porquê. Parecia-me que havia sempre outras coisas à minha volta e que eu não supunha, e que essas coisas tinham sempre mais força do que eu julgava. Assim, a minha pessoa e tudo aquilo que eu escolhera para mim não tinham sobre o mais a importância que eu lhes dera".
    "Manhã Submersa"

    Solidão,tristeza e dor,relatados magistralmente.
    Obrigado Maria pela partilha.
    Beijinho:)

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    1. Este livro de Vergílio marcou-me profundamente.

      Obrigada, querida Helena.
      Beijos :)

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  2. Somos as memórias que temos
    e as personagens que escolhemos

    Dizer que Vergílio é extraordinário é pouco, muito pouco
    (onde é que eu li isto?)

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  3. Excelente maneira de comemorar o centenário do escritor.
    Bfds

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  4. Antes a crua realidade de um destino desgraçado mas liberto à hipocrisia e não menos cruel de uma não-vida imposta.
    Excelente, Maria.

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    1. Fechar os olhos e resistir até vencer.

      Beijos, Ava, e obrigada. :)

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  5. Está para lá de bonito, triste mas belo. Revi o que permanecia guardado na memória que tinha de "manhã submersa"

    Beijinhos Tutu :)

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    1. Obrigada, Snowy! Foi um dos livros, senão o livro mais marcante da minha vida.

      Beijos :)

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  6. Belo texto Maria, com tristeza e beleza na escrita, juntamente com uma foto antiga do dormitório do Colégio da Via-Sacra, para alguns que nesses tempos que por lá passaram pode ter sido um “calvário”…

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    1. Obrigada, Legionário. Acho que quem de menino ou menina passou por antigos internatos sabe do que se fala.

      Beijinhos :)

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  7. A fotografia é arrepiante de frio de desconforto de solidão de falta de calor humano...
    Gostei muito.
    bjs

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    1. Assim eram os colégios religiosos internos e os seminários. Frios, desconfortáveis e sem calor humano.

      Beijos, papoila, e obrigada. :)

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  8. E assim se comemora o seu centenário!

    beijo amigo

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    1. Há solidões que se tocam nas palavras.

      Beijinhos, Daniel :)

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