Estranhando a ausência de chilreios, afastou as pesadas cortinas, deixando a luz do sol entrar. Afinal de contas, ninguém a proibira de olhar pela vidraça. Estremeceu! A árvore jazia, cortada, os ramos em desalinho, o tronco ferido de morte. Tentou abrir a janela. Não se mexia. Menina! Menina!-chamou. A janela, por favor! Deve estar avariada! Então? Quem lhe disse que as janelas abriam? Não vê que alguém pode cair na tentação de saltar delas? Foi nesse dia que gizou o plano de fuga. Ao final da tarde, com a roupa por baixo do roupão, misturou-se num grupo de visitas, desceu no elevador, dirigiu-se à casa de banho onde abandonou o roupão, para logo estugar o passo em direcção à porta larga de entrada. Correu! Correu muito, acompanhada de uma revoada de pássaros em chilreios sonoros.
Quando lhe deram ordem de reclusão,
Maria Antónia ruborizou, cerrou os punhos, mas sabia que era o seu
destino.
Na primeira noite, agitou-se na cama
desconhecida em sonhos suados até que lhe entraram porta dentro,
acendendo a luz branca e crua sem piedade.
O dia não tinha clareado, de tal modo
que nem os pássaros se faziam ouvir. Não obstante, tinha-os visto
da janela no dia anterior, nas árvores que sombreavam o parapeito
em cujos ramos os pequenos canoros se afadigavam em voos curtos e alegres.
Seria apenas o início de um dos dias
longos, entre pisos e salas diferentes, onde pontuavam outros como
ela, reclusos de roupão e chinelos, ombros sacudidos por tosses
profundas.
Maria Antónia vivera muitos anos, já. Fora menina, sem tempo para o ser de sua mãe ou de seu pai, na pressa de a fazerem crescida. "Uma mulherzinha, a nossa Maria Antónia!", diziam os pais, orgulhosos. Assim, aprendeu a bordar, a costurar, a cozinhar, bem como todas as artes de bem governar uma casa, a par com a leitura de romances de final feliz onde os amados não se aventuravam para além de um beijo casto e superficial nos lábios.
Mal ganhara corpo, logo lhe destinaram namoro. "Mesmo bom rapaz, o Joaquim! Reparaste, Maria Antónia, como é sensato e trabalhador?"
Joaquim passou a visita da casa, trazia chocolates e palavras sensatas, como ele. Os chocolates, repartia-os Maria Antónia com a família. As palavras em nada a entusiasmavam, ia-as ouvindo e esquecendo enquanto a doçura do chocolate a fazia acreditar que sim, que aquele era o homem ideal.
Casaram em pouco tempo. No lar, ela cuidava que tudo estivesse como ele gostava, primeiro, dos filhos que vieram, depois, e dela, nunca.
Morreram-lhe os pais. Casaram-se-lhe os filhos. Joaquim tardava fora de casa. Não que lhe estranhasse as demoras, mas agora estava só.
Dia após dia, começou a reparar no cabelo menos alinhado, adoptando um novo penteado. Ao ver-se ao espelho, pensou que podia usar uma sombra rosa nos olhos, leve, quem sabe um pouco de blush?
Joaquim chegava, beijava-a de raspão na face, sem notar as mudanças. Nem quando comprou um vestido florido, tão diverso do guarda roupa de cores escuras que o seu corpo habitara desde que se lembrava.
Foi num dia soalheiro que Joaquim entrou, tarde como lhe era hábito, estavam as janelas da casa abertas de par em par. Procurou a mulher sem sobressalto. Certamente apurava o jantar. Mas, na cozinha, não havia sinal dela. Chamou-a, "Antónia! Oh, Antónia!"
Só quando pendurava o casaco no cabide viu o bilhete.
Joaquim,
Cansei-me de
sensatez! Podes, de hoje em diante, tardar o quanto queiras. Eu, Maria Antónia,
deixei de tardar para mim.
Não sabia o que lhe acontecera, mas começara há algum tempo. De quando em vez, um canto inesperado subia-lhe à garganta, mais em manhãs ensolaradas ou ao anoitecer. Era com se tivesse um pássaro dentro do peito! Logo, uma leveza no andar, um movimento de braços incomum, desajeitado, assemelhando-se a um bater de asas. Até que acordou assim, ave, com uma marca distinta a vermelho vivo, qual reflexo do seu coração.
Saiu, voando, pela janela, em demanda de outros como ele, soltando , finalmente, o canto aprisionado.