domingo, outubro 01, 2017

Maria da Conceição

(George Clausen)

Corria o ano de 1950, Maria da Conceição tinha dez anos feitos há poucos dias quando a levaram do casebre de duas assoalhadas onde vivia com os pais e cinco irmãos. Num saco de serapilheira, três pares de cuecas de pano cru, duas combinações de terylene azul claro, um vestido azul escuro muito lavado, já com manchas brancas de tanto ser esfregado no tanque de pedra, e três pares de meias passajadas. A mãe não lhe dissera grande coisa, só a levantara mais cedo que o costume. Vem aí uma senhora da vila buscar-te, rapariga. Diz que te tem visto na missa e que lhe pareces de bom tamanho para a ajudares na lida da casa. Bem falta nos faz, mais uma jorna! Ela não percebera muito bem o que aquilo queria dizer até se ver puxada pelo braço para dentro de um automóvel branco por uma senhora gorda, com um cheiro tão doce que até o estômago se lhe revoltara. Minha mãe! Minha mãe! Chamara. Mas a mãe olhara-a sem pestanejar, e voltara-lhe as costas antes que desaparecesse na primeira curva da estrada.
Precisara de um banco para chegar à tábua de passar a ferro e engomar as blusas de linho fino da menina Carlota. Vê lá como as deixas, rapariguinha! Lava bem as mãos antes de lhes tocares! A menina vai usá-las para ir para o Liceu!

Maria da Conceição lembrou-se disso, hoje, enquanto abotoava a blusa de seda, que passara impecavelmente a ferro ontem à tarde, diante da janela debruada a cortinas de cores alegres da sua cozinha branca. Senhora de si mesma!
Suspirou, deixou as más lembranças para trás, e saiu para ir votar.


25 comentários:

  1. Outros tempos. Vidas difíceis.
    Bom domingo Maria Eu!

    ResponderEliminar
  2. De acordo com a Luísa, Maria Eu. Outras vidas, mais felizes talvez !
    Muito bonito o que escreveste. Gostei de tudo !

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Seriam felizes, Ricardo? Não creio! Conheci algumas Marias da Conceição e olha que não lhes via alegria desses tempos amargos de infância e adolescência roubadas.

      Beijinhos e obrigada pelas tuas sempre gentis palavras. :)

      Eliminar
  3. Respostas
    1. Ainda bem, GM, embora ainda haja muita criança explorada e infeliz.

      Beijos :)

      Eliminar
  4. Era assim. Penso que já não haverá tantos casos como antigamente. O seu texto é comovente e excelentemente narrado.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Criadas de servir, assim eram chamadas.

      Obrigada, Graça, e um beijo. :)

      Eliminar
  5. Respostas
    1. Regressar a umas mulheres que vi lutarem contra a servidão...

      Obrigada, Laura, e um beijo. :)

      Eliminar
  6. Olá, felizmente a vida mudou para melhor, hoje também acontece a exploração infantil, mas é mais difícil de explorara, basta uma denuncia para que se resolva a situação, no tempo da Maria Conceição existia muita miséria, para certas pessoas quanto mais miséria o povo tiver, mais eles enriquecem, sabe a quem me refiro?, pois..... são esses mesmos.
    Feliz semana,
    AG

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim, AG, a exploração e a miséria não acabaram, só mudaram de "tipologia".

      Obrigada e um beijinho. :)

      Eliminar
  7. Era essa a sina de muitas das raparigas das famílias numerosas do nosso triste Portugal.
    Enfim, senhora, hoje, o seu voto vale tanto como o da Senhora.

    Bj.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Era mesmo! Pequenitas, ainda, e já arrancadas à família. Não tinham quase nada. mas teriam ainda menos na casa dos patrões, posto que seriam quase escravas.
      Pelo menos o voto!!

      Beijinho, Agostinho. :)

      Eliminar
  8. As conquistas, maiores ou menores, são sempre um bálsamo.
    Gosto muito, Maria!
    beijinho

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Delas nos (re)construimos, Henrique!

      Obrigada e um beijinho. :)

      Eliminar
  9. Infelizmente nem todas as Maria da Conceição, e foram tantas!!, acabaram assim.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Pois não! Quantas morreram nessa servidão, outras foram vítimas de abusos sexuais de patrões e filhos de patrões, para além de tanta outra miséria física e moral.

      Beijinhos, Pedro. :)

      Eliminar
  10. Olá, 1950 foram tempos de enorme dificuldade para muitos e muito jovens de portugal, já para alguns tudo era fácil, felizmente as coisas mudaram para melhor, a maioria das Marias de Portugal evoluíram, sabem e reclama os seus direitos, as Marias e os Maneis de hoje, não são portadores da ignorância imposta.
    Feliz semana,
    AG

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Acreditasse eu que já não há ignorância...

      Beijinho, AG. :)

      Eliminar
    2. É outro tipo de ignorância.
      E é das piores.
      É a ignorância rodeada de excesso de informação. Ela é tanta que gera NADA. Outra coisa que mudou foram os VALORES MORAIS. Estes também contribuem para que o valor de uma pessoa possa ser menosprezado ao ponto de não se darem mais valor a "Marias" passadeiras, porque, despedindo uma, há dinheiro para «comprar» outra. As pessoas tornaram-se descartáveis.

      Eliminar
  11. OI MARIA!
    AS COISAS JÁ FORAM ASSIM, PARA NÓS QUE NÃO VIVEMOS ISSO, PARECERIA DESAMOS, MAS, CREIO QUE ERA NECESSIDADE MESMO DAÍ UMA MÃE VIRAR AS COSTAS PARA UMA FILHA QUE SE VAI.
    BELO TEXTO.
    ABRÇS
    http://zilanicelia.blogspot.com.br/

    ResponderEliminar
  12. Árduos começos da geração de 50...
    Mas, de alguma forma, é permitido a essa geração olhar para trás e ter prazer no presente conquistado. Algures no percurso foi permitido às que andavam na jorna poder ser «meninas». Não sei se hoje todo esse trabalho árduo de quem nada tem pode dar o mesmo tipo de frutos. Os tempos mudaram, novamente.

    ResponderEliminar