Vénus, declaradamente enregelada pelo vento oeste, músculos hirtos do equilíbrio periclitante na concha, tinha-se cansado da posição estática, dos olhares de admiração sem retorno. Sabia que as mulheres tinham alma rebelde. Outras lhe fariam companhia, decerto, numa aventura fora dos museus, longe dos holofotes da fama. Paris não era longe! Ouvira dizer que, a Mona Lisa, se começava a notar um progressivo apagamento do sorriso. Sandro* compreenderia a sua inquietude. Afinal, ele criara-a! Aproveitou a calada da noite e uma distracção do guarda (sorridente, ele, a sussurrar palavras de amor ao telemóvel) para se escapulir. No vestiário, encontrou roupa das guias. Ainda experimentou um par de sandálias, mas os seus pés não suportaram a prisão das tiras de couro. Descobriu que, por estranha magia, bastava fechar os olhos e pensar num local para se encontrar nele. Foi assim que se viu na Piazza del Duomo e, num outro instante, em pleno Louvre, desafiando a Gioconda para uma fuga. Tentou-a com o vestido amarelo que levara consigo, uns sapatos de tacão, e com um relógio Swatch há muito abandonado na secção de perdidos e achados da Galleria degli Uffizi.
- Et maintenant? perguntou-lhe a parceira.
- Haia! A "Mona Lisa do Norte"!
A rapariga com brinco de pérola não pensou duas vezes perante o desafio. Perdeu o ar melancólico, soltou os cabelos, enfiou as calças e a blusa sem mangas que lhe levavam e, com uma gargalhada reprimida há séculos, exclamou:
- Bora lá buscar a mais louca de todas! A única que tem o seu próprio museu!
Quando se deram conta, a Cidade do México estava à vista, e Frida Kahlo, com um toucado de flores, completou a quadrilha.
A vaidade, porém, prendeu-as de novo, quando um pintor lhes pediu, com voz sedutora, que posassem as quatro, tão parecidas com deusas, no sofá do aparthotel onde se hospedava. Ainda hesitaram, mas Frida derreteu-se com as doces palavras de Diego (tal e qual o Rivera) e a ela ninguém contradizia.
*Sandro Botticelli
*Sandro Botticelli