Disseram-lhe que apagasse o sorriso. Breve, previam-no. O amor é sempre feito de um raio de luz que se desvanece num tempo apertado, tão estreito como os abraços que lhe punham estrelas no olhar. Mal sabiam que o seu amor resistia a lábios cerrados e a olhos rasos de água. A luz habitava-lhe o coração, incendiando-a de dentro para fora.
A rapariga da muleta deixou cair a muleta. O fogo espalhou-se, abriram-se as borboletas num susto evidente, fizeram fila os táxis. Os prédios mais altos, tão francos, tão estruturalmente com varandas, tão soprados pelo soluço dos que nascem. As borboletas cada vez mais altas, as borboletas sem táxi, a varanda que caiu com as flores intactas da tua febre. Tenho agora o desastre da tua roupa no meu chão, o sangue feliz. Vasco Gato
Espantou-se com as begónias que, sem mais nem porquê, cresciam no passeio esburacado. Ainda ontem era um deserto de pedras irregulares com arestas duras, ratoeiras para os passantes mais incautos. Perguntou à rapariga de vestido branco quem plantara as flores assim, tão de repente. Pois que ninguém sabia, respondeu-lhe com os olhos brilhantes e felizes, mas tinham sido vistas dezenas de borboletas coloridas, em dança rodopiante pela rua. Fora enquanto elas dançavam que uma varanda caíra e espalhara flores pelo chão cinzento. Havia também quem afirmasse ter visto o amor, de sorriso nos lábios e gestos doces, a regar as begónias noite dentro, enquanto no quarto da varanda que cedera, Maria e José se perdiam, como que trémulos de febre, em carícias mil.
Era Domingo e ao Domingo preguiçava entre lençóis até mais tarde. Deixava o sol entrar lá pelas nove, ia buscar um sumo de laranja, um croissant e uns morangos, numa bandeja, e aproveitava para dar um avanço nas leituras que a voragem da semana mal lhe permitia aflorar. Só pelas doze saía para um passeio pela beira-rio. A prata líquida, refulgindo sobrevoada pelas gaivotas em elegantes passos de dança, nunca cessava de a encantar. Era ali, naquele reflexo argênteo, que se deixava enlear pela beleza que lhe escapava na pressa dos demais dias.
Se fosse uma hora do dia, seria o entardecer. Se fosse uma estrela, seria Nashira. Se fosse uma direcção, seria um traçado irregular. Se fosse um móvel, seria uma chaise-longue. Se fosse um líquido, seria água fresca. Se fosse um pecado, seria a luxúria. Se fosse uma virtude, seria a generosidade. Se fosse uma pedra, seria rubi. Se fosse um monumento, seria o mais pequeno e simples de todos. Se fosse uma árvore, seria uma oliveira. Se fosse um fruto, seria uma cereja. Se fosse um clima, seria o temperado marítimo. Se fosse uma ave, seria uma gaivota. Se fosse um instrumento musical, seria uma guitarra. Se fosse um elemento, seria o fogo. Se fosse uma cor, seria o vermelho. Se fosse um animal, seria um gato. Se fosse um som, seria o do vento nas árvores. Se fosse uma flor, seria um cravo vermelho. Se fosse uma música, seria “Wild is the wind", Nina Simone . Se fosse um estilo musical, seria tango. Se fosse um sentimento, seria a alegria. Se fosse um livro, seria de poemas. Se fosse uma comida, seria gelado de limão com chocolate quente. Se fosse um lugar, seria uma ilha (com as coisas e as pessoas que amo). Se fosse um gosto, seria o da canela. Se fosse um cheiro, seria o do mar. Se fosse uma palavra, seria «paixão». Se fosse um verbo, seria «cuidar». Se fosse um objecto, seria um livro. Se fosse uma peça de roupa, seria uma écharpe. Se fosse uma parte do corpo, seria a boca. Se fosse uma expressão facial, seria um sorriso. Se fosse uma personagem de BD, seria a Mafalda (sempre questionadora). Se fosse um filme, seria “Casablanca” . Se fosse uma forma, seria oval. Se fosse um número, seria o 8. Se fosse uma estação do ano, seria a Primavera.
Maria do Rosário olhava Alberto com ternura, enquanto lhe cortava uma fatia generosa de torta de cenoura. Ah, como o tempo fora pouco magnânimo para com ele! Recordava-o ainda muito jovem, talvez com uns catorze anos, sorrindo-lhe timidamente durante as aulas de Francês da Madame Rose. Ela não se dava muito com os colegas de turma. Regressara há pouco de África e era tudo tão novo que chegava a ser assustador. Tinha saudades do sol, do calor, da liberdade de ir à praia ao fim da tarde, da Nhá Siara e do Tito. De comer mangas maduras até lhe doer a barriga... Rosarinho, como lhe chamavam à época, dera para sonhar com os olhos ternos de Alberto e, um dia, num arroubo de loucura, escreveu-lhe um bilhete.
Alberto, gosto de ti,
sabes? Podes acompanhar-me a casa no final das aulas, se quiseres.
Rosarinho
Mal terminou de passar os exercícios de gramática que a professora Laurinda escrevera no quadro, lançou-se porta da sala fora, coração aos pulos, arrependida do que tinha feito. Estacou no portão do Liceu ao ouvir o seu nome na voz doce de Alberto. Sentiu a respiração ofegante dele, olhou-o, envergonhada, e, sem que nada o previsse, ele pespegou-lhe um beijo ruidoso na bochecha e pegou-lhe na mão para a levar a casa.
Caiu a noite, a mulher deixou a bolsa pousada no sofá e saiu para a floresta. Os papagaios, amigos do sol, deram lugar aos mochos. Foi assim que regressou ao fundo branco da casa, de blusa amarela não-Neusa, com um mocho empoleirado em cada ombro.