sábado, outubro 17, 2015

Perdoar

(Black raptor art)

O calor abrasava, por aqueles dias, na aldeia. Mariana brincara o dia inteiro em correrias pelos campos e gargalhadas partilhadas com a criançada da vizinhança. Nunca se apressava no regresso a casa. Costumava ir espreitar os animais, vacas, porcos, galinhas, coelhos e, claro os seis cães que tanto acompanhavam o pai nas caçadas como a rodeavam a pedir mimo.
Foi ao chegar às pocilgas que percebeu algo de estranho. A porca maior, que tinha acabado de parir dez porquinhos (ainda de manhã os tinha visto em esfomeada pose a mamar na mãe, deitada no chão, meiga que só visto) estava a ser encaminhada para uma carrinha de caixa aberta onde já estavam os outros porcos da exploração agrícola. Viu a expressão do pai, fechada e tensa. 
- Vai para casa, menina! A tua mãe já deve estar ralada! Já viste as horas?
Em casa, o jantar decorreu em silêncio, à excepção dos suspiros da mãe que, a cada passo, punham o pai a olhá-la com um ar de censura.
- Mãe, o que tens?
- Nada, filha! Só estou cansada! Vamos para a cama cedo, sim?
Deitada, percebia uma agitação que não se confinava aos de casa. A aldeia fazia eco de vozes e guinchos a assemelharem-se aos contos de terror que o primo Zé costumava contar nas noites longas de Verão. Levantou-se, a medo, e assomou à janela. Não muito longe, o céu iluminava-se à luz de fogueiras e o ruído intensificava-se com as vidraças abertas. O ar estava irrespirável com um cheiro acre.
De manhã, soube que todos os porcos da aldeia tinham sido levados para um campo abandonado e mortos, um a um, com uma pistola especial, diziam, para depois serem queimados e enterrados. 
- Mãe! Mãe! E os porquinhos, mãe? 
- Tinha que ser, filha, era a peste!
- Nunca mais perdoo o pai! Nunca mais!

Mariana ainda não sabia o significado de "perdoar".



24 comentários:

  1. Mariana pode ter aprendido o significado de perdoar, mas não de esquecer, resumindo Mariana cresceu...

    Abreijo Maria Tu
    Bom fim de semana

    ResponderEliminar
  2. Para perdoar é preciso compreender o outro e as suas circunstâncias. E há "maldades" que só podem ser entendidas mais tarde, à luz da experiência e maturidade. Muitos de nós só compreendemos certas atitudes dos nossos pais quando nos tornamos pais. Gostei de conhecer a Mariana e a sua inocência.

    Um beijinho e bom fim de semana, Maria

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Uma Mariana igual a muitas meninas de aldeia que não compreendiam a morte dos animais. Nem por doença, nem para servir á mesa. :)
      Certamente cresceu e compreendeu, perdoando.

      Beijos, Miss Smile. :)

      Eliminar
  3. Perdoar é, quanto a mim, uma das mais belas capacidades humanas. E não é muito comum de encontrar. Mas, como diz a nossa querida Miss Smile, é preciso primeiro atingir uma certa maturidade, isso sem dúvida que sim.
    Um beijinho, Maria, e um bom fim de semana.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Perdoar é, sim, uma excelente capacidade que o crescimento interior nos facilita.

      Beijos, Susana, e uma boa semana. :)

      Eliminar
  4. Pois ela aprendeu parte do termo "perdoar".
    Ela aprendeu a não se esquecer....Interessante como o "perdoar" e o "esquecer" andam juntos....
    Pode-se perdoar. Mas não se consegue esquecer....Já o esquecer supõe o perdão!!!!!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Mesmo que não se esqueça, pode-se perdoar. O perdão deixa as marcas mais suaves.

      Beijinhos, PDR. :)

      Eliminar
  5. Era a peste, um dos 4 Cavaleiros de Apocalipse ;)
    Perdoar o Quê?
    Um beijo, Maria.

    Não tenho vindo aqui tantas vezes
    como desejaria. Tenho tido
    outros afazeres. :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Para um adulto, parece coisa pouca matar os porcos doentes. Para uma menina, assemelhava-se a um crime contra a vida.

      Obrigada pelas tuas palavras, Tristan. Espero que esses afazeres sejam "dos bons"! :)

      Beijinhos. :)

      Eliminar
  6. Olá, Maria, venho guiada pelos Jardins de Afrodite, tentava descobrir que tipo de música seria a tua mas encantei-me com este post e fiquei.
    xx

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá, papoila!

      Fico contente que mais uma amiga da Afrodite venha e fique. Os amigos dos meus amigos são sempre bem-vindos! :)

      Beijinhos.

      Eliminar
  7. O perdão é um ato de desenvoltura moral que se vai aprimorando com a idade. Embora, às vezes, não se perceba por que razão o fazemos.
    Bom fim de semana, Maria Eu.
    Um beijo,
    Mia

    ResponderEliminar
  8. Isto levou-me a pensar naquele "princípio" que alguns defendem e que afirma que o perdão implica esquecer o que nos magoou. Não concordo nada com isso.
    E julgo que se funcionarmos muito com base na empatia é relativamente fácil perdoar.
    Bom domingo, Maria.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Também não julgo que perdoar signifique esquecer. Perdoar significa ser capaz de ver com outros olhos.

      Beijos, Isabel, e boa semana. :)

      Eliminar
  9. Saberá
    Todos um dia acabamos por saber
    Uns usarão o perdão
    outros nunca perdoarão

    Eu procuro perdoar
    umas vezes sim, outras não

    (e é muito mais difícil a compreensão do contexto e apreender o conceito de justiça)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito difícil, a aprendizagem das coisas da vida.

      Beijinhos, Rogério. :)

      Eliminar
  10. Quando se perdoa, de forma alguma muda o passado, mas com certeza muda o futuro.

    Boa semana Maria!:)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. E o presente, Legionário. O futuro começa aí.

      Beijinhos e boa semana. :)

      Eliminar
  11. Não sei se perdoar se aprende, mas aprende-se com certeza a compreender e a arrumar certas coisas no cantinho do esquecimento ou quanto mais não seja, no cantinho dos assuntos arrumados. Sim, isso vem com o tempo ou então é um dom. Beijinhos

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. É superior aquele que sabe perdoar e seguir em frente.

      Beijinhos, GM. :)

      Eliminar
  12. Deliciosa história para memória futura
    tanta gente que não sabe nem sonha
    o carinho e a violência à nossa beira
    e o perdão e o ter de ser
    a impressão de haver
    incompreensão
    num tempo de crescer.

    Ontem assim
    hoje sem fim

    Bj

    ResponderEliminar
  13. Somos o que somos construídos de memórias.

    Beijinhos, Agostinho, e obrigada. :)

    ResponderEliminar