terça-feira, fevereiro 24, 2015

Ao menos que...

(Gianni Monteleone)


Ana nascera num tempo em que as mulheres cresciam em malhas apertadas, ensinadas pelas mães e vigiadas de perto pelos pais e pelos irmãos. Adorava cantar e dançar. Fazia-o à socapa, ensaiando passos irreverentes no quarto, ao som da telefonia que o irmão mais velho ouvia no sótão, e deixando a voz soltar-se a plenos pulmões nas correrias pelos campos. A mais nova de dez irmãos, foi-os vendo partir, de festa em festa de casamento, embalada no sonho de ser levada também por um homem garboso que soubesse dançar e lhe desse filhos aos quais embalasse com canções. Ele veio, o seu homem. Bonito, garboso, apaixonado. No enxoval, uma máquina de costura e uma telefonia. Ana mal podia esperar pelas noites em que, depois de jantar, arrumada a cozinha, ele a abraçasse pela cintura e a arrebatasse em danças sem fim.

Ana não sabia que aquele homem, tal como o pai e os irmãos, nunca iria deixá-la dançar, que isso de dança era no namoro. Ao menos, suspiraria ela uns anos depois, enquanto costurava um vestido às pregas e ouvia histórias de amor na telefonia, ao menos pude embalar os meninos cantando.


27 comentários:

  1. Mas isso só não chega, nunca chega.
    E depois vem a tristeza e o arrependimento, o tal arrependimento por aquilo que nunca se fez.

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  2. Houve e ainda há muitas Anas por aí, infelizmente.
    Beijo, Uvinha! :)

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  3. O duo máquina de costura Singer / rádio Philips: máquinas de criar sonhos, máquinas de adiar sonhos.

    Boa noite Maria :)

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    1. Tantos sonhos nessas horas a dar ao pedal. Parece que volto à infância e oiço essa batida ritmada...

      Beijo, Xil! :)

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  4. Não são velhas

    são jovens com experiência

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  5. Se esta "Singer" cantasse, muitas histórias de tempos em que as mulheres eram simplesmente proibidas, iríamos conhecer !

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  6. Ana, conformada, dançava ao ritmo do pedal da máquina de costura.

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  7. Ainda há tantas prisões onde vivem mulheres que apenas sonham. Mas não é fácil gritar e decidir mudar. Nem sempre é facir :)
    Beijos Maria :)

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  8. Nem o desejo era consentido. O poder era legitimado pela religião. Tudo era pecado.
    Muito bem, Maria.

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    1. E, na cabeça de muitas, continua a ser tudo pecado...

      Beijinhos, Agostinho! :)

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  9. Horas adentro da noite fazia companhia à minha Mãe olhando-a costurar os vestidos e sais na sua Singer, para as senhorecas como ela dizia. Trabalhava desde que se levantava - doméstica! Vidas de mulheres especiais nas nossas vidas...

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    1. Tantas e tantas mães em sonhos sem futuro!

      Beijinhos, Madagascar, e obrigada pelas palavras. :)

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  10. Tál como esta velha... "Singer", antigas situações que infelizmente por vezes ainda são vividas actualmente!

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    1. E ainda estão em muitas casas, as "Singer". Hoje há as escravas do aspirador, do forno XPTO, das cafeteiras Nesspresso, e da TV.

      Beijinhos, Legionário. :)

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  11. Um texto que retrata uma realidade com alguma proporção em pleno século XXI.
    Deixo bem haja para ti Maria :))

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  12. Raro era que nesse tempo houvessem condições de avaliar a sinceridade do amor de alguém.
    Hoje, embora menos severo e preconceituoso o contexto, a incapacidade é semelhante.
    Hoje, embalam-se os meninos ao som baixo da telenovela, não tirando os olhos dela.

    (não sei se recebeu o meu sms.
    se aconteceu, não parece)

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  13. Exactamente, Rogério!

    (sms?? essa agora é que me deixou boquiaberta. não sabia que tinha o meu nro de telemóvel)

    Beijinhos. :)

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  14. Ah, Maria... tantas Anas que ainda caem na esparrela do "homem bonito, garboso, apaixonado" e se acabam com uma Singer e/ou com um alguidar de roupa e/ou tachos e panelas e filhos para criar-homem para amar e vida "cadê-la?" - não pense alguém que isto já não se usa nos dias de hoje.
    Muito bom. Gostei demais.
    bjn amg

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  15. EScreve-se muito bem por aqui... A minha avó tinha uma destas, que passou para a minha mãe...restaurei-a o ano passado...Ai as memórias...

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    1. Obrigada, Luís. :)
      As memórias são tramadas...

      Beijinhos. :)

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