sábado, janeiro 31, 2015

Nós, feitos para as palavras


(Ana Hatherly)

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos a morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
(...)
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar.


Mário Cesariny, in Pena Capital




Pronunciem-se as palavras, primeiras ou derradeiras, pronunciem-se as palavras.

quinta-feira, janeiro 29, 2015

Amor tardio




(de Chirico)

The coming of light

Even this late it happens:
the coming of love, the coming of light.
You wake and the candles are lit as if by themselves,
stars gather, dreams pour into your pillows,
sending up warm bouquets of air.
Even this late the bones of the body shine
and tomorrow's dust flares into breath.


Mark Strand





A vinda da luz

Mesmo tão tarde, acontece:
a vinda do amor, a vinda da luz.
Acordas e as velas acenderam-se como se por si só,
as estrelas reúnem-se, os sonhos precipitam-se nas tuas almofadas,
evolando bouquets de ar quente.
Mesmo tão tarde os ossos do corpo brilham
e a poeira do amanhã incendeia-se na respiração.

Mark Strand traduzido por Maria Eu

quarta-feira, janeiro 28, 2015

Conselho 2

(Andy Clover)





É na observação da tua total insignificância que reside a tua absoluta importância.

terça-feira, janeiro 27, 2015

Memória

(Anton Semenov)


70 anos da libertação do campo de concentração nazi Auschwitz-Birkenau.

Que a memória nunca deixe na obscuridade aqueles que foram aprisionados, humilhados, torturados e mortos. 

Que a memória possa deixar aqueles que foram resgatados em paz!


domingo, janeiro 25, 2015

Conselho

(Miss Aniela)

"(...) ou o poço era muito fundo ou ela caía muito devagarinho, porque o certo é que teve imenso tempo para olhar em volta, enquanto descia, e tentar imaginar o que lhe iria suceder em seguida... De passagem, tirou um boião de um dos armários. Tinha um rótulo onde se lia «DOCE DE LARANJA», mas para seu grande desapontamento, estava vazio."

Lewis Carrol, in Aventuras de Alice no País das Maravilhas




Moral da história:
Nunca desejes um doce apenas pela descrição do rótulo e muito menos deixes de verificar se há, de facto, doce dentro do frasco.

sábado, janeiro 24, 2015

Pequenos milagres





El milagro

Pienso en ti.

La tarde,
No es una tarde más;
Es el recuerdo
De aquella otra, azul,
En que se hizo
El amor en nosotros
Como un día
La luz en las tinieblas.

Y fue entonces más clara
La estrella, el perfume
Del jazmín más cercano,
Menos
Punzantes las espinas,

Ahora,
Al evocarla creo
Haber sido testigo
De un milagro.

Meira Delmar




Havia o azul do mar, o sol brilhante, gaivotas em voos largos sobre a praia. Havias tu, o teu olhar terno e novo, as tuas mãos em voos picados no meu corpo. Era o tempo dos pequenos milagres.

sexta-feira, janeiro 23, 2015

Silêncio


(Manuel Madeira - Ourique)

Silêncio. Fechas os olhos e o silêncio tem, afinal, ruído. O vento agita o castanheiro e a nespereira onde os pássaros procuram abrigo, forçando-os a esvoaçar entre chilreios estridentes (pedaços de conversa de pássaro em tarde de Inverno soalheira). Ouve-se o crepitar das pinhas na lareira e, de longe a longe, as gargalhadas das crianças que brincam no quintal.
Fechamos os olhos e torna-se audível um sorriso.




Sorriso audível das folhas

Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.

Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou
E estamos os dois falando
Do que se não conversou
Isto acaba ou começou?

Fernando Pessoa


quinta-feira, janeiro 22, 2015

Do Amor


(Maria Keil)

"(...) 
Ah, o amor. O amor faz-se se houver tempo. O amor faz-se aos bocadinhos e só se convier. O amor faz-se na pausa para o café. O amor é uma aberração. O amor mete medo. Chega-te para lá com esse «adoro-te»! Não me venhas com esse «gosto de ti»! Cai-nos a PIDE do amor em cima, és apanhado e vais dentro. O amor quer-se preso pela trela. O amor quer-se de castigo no canto da sala. Pouca conversa, pouco barulho. O amor custa. Perde-se tempo e dinheiro. O amor está fora de moda. Não condiz com as batas brancas da biologia nem com os botões coloridos da tecnologia nem com a cor do papel dos contratos pré-nupciais. O amor é para meninos, ser-se crescido é outra coisa. O amor foi-nos confiscado. Não contem comigo. Eu não tenho jeito nenhum para ser a pessoa que todos esperam. Não tenho competência para ficar a ver o amor passar sem correr atrás. Compreendam: o amor é a minha campainha de Pavlov. 
Estímulo-resposta, como me foi explicado na escola de fazer profissionais.
Eu não tenho jeito para telefonemas nem para passeios em centros comerciais. 
Não contem comigo para ser cão que ladra mas não morde. Não contem comigo para não dizer o que não é suposto. Para cancelar beijos, inventar pretextos, sufocar euforias, adiar alegrias. Para vos escutar em silêncio. 
Para vos poupar ao meu amor, não contem comigo. Compreendam: eu não me posso comprometer. "

Susana Cristina Marques Santos, in 'Textos de Amor – Museu Nacional da Imprensa




Um dia és tu. Coração em arritmia, pernas bambas. Um dia não escondes que o amor é brilho no olhar, gesto terno na ponta dos dedos, passo de dança no passeio, beijo trocado num vão de escadas, mãos rasando um outro corpo, sangue correndo nas veias em borbotões.


quarta-feira, janeiro 21, 2015

Incompatibilidade





Silver, she said                                         Gold, he said
Under the moonlight.                             Under the sunlight.


                                                          There's no moonlight by day
                                                       Neither there's sunlight by night.




terça-feira, janeiro 20, 2015

Nudez




(Jack Vettriano)



"Despe-me!" pediu-lhe.

"Mas tu estás nua!"

"Despe-me a alma!" retorquiu. 




segunda-feira, janeiro 19, 2015

Se quiseres morrer

(Giulia Pesarin)

Cuando tengas ganas de morirte

Cuando tengas ganas de morirte
Esconde la cabeza bajo la almohada
Y cuenta cuatro mil borregos.
Quédate dos días sin comer
Y veras qué hermosa es la vida:
Carne, frijoles, pan.
Quédate sin mujer: verás.
Cuando tengas ganas de morirte
No alborotes tanto: muérete
Y ya.


Jaime Sabines




Desejas a morte desconhecendo a falta da vida. Morre, então! Não te limites à afirmação do desejo de morrer. 

domingo, janeiro 18, 2015

Voo

(Toni Grote)

Às vezes é menina, outras mulher. Às vezes hesitante, outras firme. Nem sempre alegre, nem sempre triste, embora mais da primeira do que da segunda se encha a cada dia. Sempre? Ah, sempre só nos sonhos, no território que paira logo ali, na linha azul onde dançam as gaivotas. 

*nota-se muito que amo os pássaros?


sábado, janeiro 17, 2015

sexta-feira, janeiro 16, 2015

Do destino das garças


(McDevoe)


Garças de equilíbrio frágil, pausado. Lago, longo, largo. Vento soprando ondas. Bátegas a cortá-las, a fazê-las sérias, tingidas de verde por cabelos de algas alvoroçados. Cairão, as garças, em desgraça?


Pó de sim

(Ino Maja Sotzic)

"Tempo de não
tem pó de não?"

Adília Lopes, in Apanhar Ar




Tempo de não
tem pó de sim!

Maria Eu

quarta-feira, janeiro 14, 2015

Jardim secreto


(Diego Rivera)


Helena tinha as mãos macias e sempre quentes. Eram uma extensão do coração, as suas mãos. Onde tocava brotavam flores e era sempre Primavera. Por isso, nascera a Júlio um jardim no peito. Era nesse jardim que se encontravam, sempre que a saudade vinha.


terça-feira, janeiro 13, 2015

Cinzento

(Maria Eu)


Havia dias coloridos, sabia-o. Contudo, aquele entardecera cinzento.







O dia deu em chuvoso

O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.

Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.

Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.

Carinhos? Afetos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso? Não sei...
No azul da manhã...

O dia deu em chuvoso.


Álvaro de Campos, in "Poemas"

segunda-feira, janeiro 12, 2015

A morte de um soldado


(Dead soldier from Delacroix's Liberty)


The Death of a Soldier

Life contracts and death is expected,
As in a season of autumn.
The soldier falls.

He does not become a three-days’ personage,
Imposing his separation,
Calling for pomp.

Death is absolute and without memorial,
As in a season of autumn,
When the wind stops.

When the wind stops and, over the heavens,
The clouds go, nevertheless,
In their direction.

Wallace Stevens






A  Morte de um Soldado

A vida contrai-se, e espera-se a morte,
Como se fosse no Outono.
O soldado tomba.

Ele não se transforma num herói de três dias,
Impondo o seu reconhecimento,
Clamando por pompa.

A morte é absoluta e nada memorável,
Como acontece no Outono,
Quando o vento pára.

Quando o vento pára e, pelos céus,
As nuvens seguem, apesar disso,
O seu caminho.

Wallace Stevens, tradução livre de Maria Eu

domingo, janeiro 11, 2015

Morrer

(Pablo Picasso)

Metafísica

De cada vez que nos teus braços 
Por uns momentos morro, 
Nos abismos de mim o meu amor pede socorro 
Como se à força alguém lhe desatasse os laços. 

De cada vez apreendo 
Que fica em muito pouco, ou nada, aquele tanto 
Que o querer ter promete, enquanto 
Se não tendo. 

Desejar é que é ter! mas não nos basta. 
Sonhar é que é possuir sem tédio nem cansaços. 
Sei-o, mas só já morto nos teus braços. 
Sofre a carne de ter, ou de ser casta. 

Sobre o desejo farto, a alma se debruça, 
Contempla o nada a que o fartá-lo aponta. 
E atrás do mesmo nada eis que ela mesma, tonta, 
Vai, se a carne reacende a escaramuça. 

Entrar num corpo até onde se oculte 
O para Lá do corpo - eis o supremo sonho. 
De que desejos o componho, 
Se ei-lo se descompõe quando o desejo avulte? 

Sôfrega, a carne pede carne. 
Saciada, 
Pede, ela própria, o que jamais sacia. 
Para de novo se inflamar, é um dia. 

Para de novo desgostar, um nada. 
Ai, como não te amar e não te aborrecer, 
Carne de leite e rosas, - terra inglória 
Do longo prélio-entendimento sem vitória 
Que é carne e alma, ter-não ter?

José Régio






De cada vez é pouco
o que morro em teus braços
Quero morrer sempre mais,
corpo adentro, até ao âmago.




Mulheres temerosas


(Dante Gabriel Rossetti - Joana D'Arc))


Fearful women

Arms and the girl I sing - O rare
arms that are braceleted and white and bare

arms that were lovely Helen's, in whose name
Greek slaughtered Trojan. Helen was to blame.

Scape-nanny call her; wars for turf
and profit don't sound glamorous enough.

Mythologize your women! None escape.
Europe was named from an act of bestial rape:

Eponymous girl on bull-back, he intent
on scattering sperm across a continent.

Old Zeus refused to take the rap.
It's not his name in big print on the map.

But let's go back to the beginning
when sinners didn't know that they were sinning.

He, one rib short: she lived to rue it
when Adam said to God, "She made me do it."

Eve learned that learning was a dangerous thing
for her: no end of trouble would it bring.

An educated woman is a danger.
Lock up your mate! Keep a submissive stranger

like Darby's Joan, content with church and Kinder,
not like that sainted Joan, burnt to a cinder.

Whether we wield a scepter or a mop
It's clear you fear that we may get on top.

And if we do -I say it without animus-
It's not from you we learned to be magnaminous.


Carolyn Kizer




Mulheres temerosas


Os braços e a rapariga que canto – Ó rara
braços com pulseiras, brancos e nus

braços que eram da bela Helena, em cujo nome
Gregos chacinaram Troianos. A culpa foi de Helena.

Digam-na ama esquiva; guerras em troca de terra
E o lucro não parece suficientemente fascinante.

Mitologizem as vossas mulheres! Que nenhuma escape!
A Europa foi baptizada com base numa violação brutal:

Rapariga epónima cavalgando um touro, este tentando
espalhar esperma por todo um continente.


O velho Zeus recusou-se a aceitar essa insignificância.
Não é o seu nome que está gravado no mapa.

Mas regressemos ao princípio
quando os pecadores não sabiam que estavam a pecar.

Ele, com uma costela a menos: ela viveu para o lamentar
quando Adão disse a Deus, “Ela obrigou-me.”

Eva aprendeu que aprender era perigoso
para ela: trar-lhe-ia problemas sem fim.

Uma mulher educada corre perigo.
Fechem a vossa companheira à chave! Mantenham-na uma estranha submissa

como a Joan de Darby *, satisfeita com a igreja e as crianças
não como a tal de santa Joana, queimada até ficar em cinzas

Quer empunhemos um ceptro ou uma esfregona
É óbvio o vosso medo que cheguemos ao topo.

E se chegarmos – digo-o sem hostilidade -
Não será por termos aprendido convosco a ser magnânimas.



Carolyn Kizer, traduzida por Maria Eu



*Quando os Ingleses usam a expressão “como Darby e Joan”, fazem-no para referir-se a um casal tradicional, acomodado, que vive contente com uma vida traquila.

sábado, janeiro 10, 2015

Da entrega

(Helena Santos - a porta)


Abro-te as portas querendo
a tua luz
numa sede de ti que não se acalma
Não me negues a água
que mata a minha sede
Desejo o teu incêndio
queimando a minha alma


Maria Teresa Horta





Dou-te o meu corpo inteiro desejando
a tua alma
numa ânsia de te ter sem restrições
Dá-me as tuas mãos
que sabem os meus caminhos
Quero as tuas palavras
tatuando a minha pele


Maria Eu

sexta-feira, janeiro 09, 2015

Este é o meu sangue


(Mehmet Dere)

O Telhado


a ideia acidental de pegar numa agulha e enterrá-la muito  perto do coração. fazê-lo tranquilamente e exclamar: este é o meu sangue. depois vêm as pessoas que cortam o fio dos sóis suspensos e exclamam: este é o teu sangue. gota a gota durante muito tempo a noção de perfeito inverte a exclamação e as pessoas perguntam: que sangue?
chegam os grupos especializados e exclamam: este é o sangue derramado por vós.
que imensa fragilidade acrobática há num telhado de culpa! se ao menos tivéssemos uma textura animal talvez a lã pudesse ser o musgo a terra o espinho o prédio que estava ali a dois passos.
raiz com uma noite ao lado e um país enxuto com
unhas autênticas e cabelo.

Maria Quintans, in 40XAbril





Foram tantas as noites que de dia nos enegreceram. Tantos, aqueles que sangraram em seu nome, em nosso nome. Sangramos, hoje, ainda, em nome de quem? Em nome de que liberdade absurdamente fugidia e breve?

quinta-feira, janeiro 08, 2015

Hipocrisia



(Jackson Pollock)


school of hypocrites

talk with your kid about friendship

talk with your kid about respect

talk with your kid about self-esteem

talk with your kid about compassion

and send your teen to war



Robert Lowell





escola de hipócritas

fala com o teu menino sobre amizade


fala com o teu menino sobre respeito

fala com o teu menino sobre auto-estima

fala com o teu menino sobre compaixão

e depois, manda-o, adolescente, para a guerra


Robert Lowell traduzido por Maria Eu


quarta-feira, janeiro 07, 2015

Coração

(Henri Matisse)

Heart 

There's a hole in my heart.
Where's the heart with my hole?
Mend it. Fill it. Make it fade away.

There was a hole in my heart.
Where's the hole in my heart?
Undo the mending. Bring it back.

There's no heart when there's no hole.

Maria Eu





Coração

Há um buraco no meu coração.
Onde está o coração com o meu buraco?
Consertem-no. Preencham-no. Façam-no desaparecer.

Havia um buraco no meu coração.
Onde está o buraco do meu coração?
Desconcertem-no. Tragam-no de volta.

O coração não existe se não tiver um buraco.

Maria Eu, do original em Inglês

terça-feira, janeiro 06, 2015

Comboios

(imagem daqui)


Vendem-se estações de comboio. Quem um dia as tiver, porém, nunca poderá dizer que os verá passar, os comboios.


Densa é a noite


(Arvydas Kašauskas)




"Que estado extraordinário, a vulnerabilidade nocturna. Não acontece sempre, mas às vezes, ao deitarmo-nos, o medo cai-nos em cima como um predador. Então a dimensão das coisas desarticula-se; problemas que durante o dia são apenas pequenos aborrecimentos crescem como sombras expressionistas até adquirirem um tamanho sufocante e descomunal.


(...) No desamparo das noites, enfim, quando me oprime a lembrança dos Mengele que torturam crianças, ou o pavor modesto e egoísta da minha própria morte, que já é, por si só, bastante apavorante, recorro à louca da casa e tento encadear palavras belas e inventar outras vidas. Embora às vezes pense que não as invento, que essas outras vidas estão aí e que eu deslizo simplesmente para dentro delas."

Rosa Montero, in A Louca da Casa



Misteriosos são os refúgios do medo. De outras peles nos revestimos em fuga do pavor nocturno, encarnando outras personagens, galopando vidas inventadas.

domingo, janeiro 04, 2015

Azul


(Uma praia a Norte)


Às vezes, basta um céu que entre mar adentro. Ou será um mar que entre céu adentro?


Cruzinha (post com bolinha vermelha)


(Dina Goldstein)


CRUZINHA


Disseram-me mas eu não acredito que um tempo era tudo passado, os homens e as mulheres encontravam-se faziam ou não faziam amor e depois sorriam. Os homens, que raio, as mulheres, que raio, para mais a fazer ou não fazer. Que vagares e que modos os dessa gente sem propósitos, sem ambições nem carreiras, dispostos ao tempo e a sorrir como se o mundo fosse de alegrias.
Eu sei bem que é tudo assim como se vê, uns e outros e outras com agendas escondidas nos cus a fazer cruzinhas muito objectivas. Chefe de duas pilinhas e um telefone, cruzinha. Coordenador de tristezas e tempo deitado ao tempo, cruzinha. CEO da puta que me pariu, cruzinha. Depois um homem, uma mulher, copos e uma festa de escritório, o vinho, o Lopes que engraçado, vives aqui sozinho? Que casa tão grande, também adoro o Cole Porter, dá-me matulão, ai que doida.
Os cadernitos pretos estão sempre ao fundo da cama, o primeiro a acordar que o apanhe, é um igual ao outro, no quadrado branco à frente das letritas: já te fodi, cruzinha.

Nuno Camarneiro






Cruza as pernas, cruza o olhar, cruza o teu espaço com o meu. Cruzamos corpos, fluídos, gemidos e incentivos.
Simples. Tão simples. No final, basta uma cruz.

"Já te fodi, cruzinha."




sábado, janeiro 03, 2015

O meu amor


(E. Munch)



O meu amor é um ribeiro; agitado, intenso, em correria quase pueril.

O meu amor é o vento norte; forte, em rodopio, agreste e devastador.

O meu amor é o sol de Verão; luminoso, quente, a arder na pele.

O meu amor é a chuva de Inverno; copioso, penetrando-me o corpo até aos ossos.

O meu amor é sorrisos, lágrimas, ternura, mãos trémulas, ciúme, paixão, coração em tropel, "(in)completude". O meu amor é assim porque é só meu e assim o sinto, apenas eu.




Liberdade(s)

(Edgar Martins)

"There are many ways to be free. One of them is to transcend reality by imagination, as I try to do.” Anaïs Nin

(Há muitas formas de sermos livres. Uma delas é transcender a realidade através da imaginação, como eu tento fazer.)


sexta-feira, janeiro 02, 2015

Os teus olhos



(Marc Chagall)


A Curva dos Teus Olhos

A curva dos teus olhos dá a volta ao meu peito
É uma dança de roda e de doçura.
Berço nocturno e auréola do tempo,
Se já não sei tudo o que vivi
É que os teus olhos não me viram sempre.

Folhas do dia e musgos do orvalho,
Hastes de brisas, sorrisos de perfume,
Asas de luz cobrindo o mundo inteiro,
Barcos de céu e barcos do mar,
Caçadores dos sons e nascentes das cores.

Perfume esparso de um manancial de auroras
Abandonado sobre a palha dos astros,
Como o dia depende da inocência
O mundo inteiro depende dos teus olhos
E todo o meu sangue corre no teu olhar.


Paul Éluard, in "Algumas das Palavras" 

Tradução de António Ramos Rosa




É quando percorro a curva dos teus olhos que se iluminam os meus.