sábado, setembro 26, 2015

Tempo de ouriços

(Ann Lehman)


Havia um castanheiro no quintal da Sra. Rosalina. Este era um facto que Clarinha sabia, muito mais agora, que o Outono revelava os ouriços prenhes de castanhas gordas e reluzentes, a abri-los antes do tempo, em parto forçado. Ela bem trepava ao muro que dividia o seu quintal do da vizinha e via um desperdício de frutos, ali amontoados por entre a erva densa. 
- Oh, mãe, a Sra. Rosalina não apanha as castanhas? 
- E que tens tu com isso, menina? São dela, faz o que lhe aprouver!
Mas parecia que não lhe aprouvia nada pois as ditas apodreciam no chão e as que restavam em equilibrismo ouriçado iriam acabar de igual modo.
Clarinha tomou como suas as dores dessas castanhas em perigo, trepou, uma vez mais, ao muro, alçou uma perna para o outro lado e deixou-se escorregar. Havia uns ramos de videira secos que prontamente foram remexidos até que um, mais comprido, lhe serviu de extensão às mãos para varejar a árvore. Era um regalo, a chuva de castanhas! Apanhou-as para o bibe de quadrados azuis e brancos, debruado a espiguilha, que a mãe tinha costurado. Porém, logo percebeu que não poderia sair como entrara. Olhou, aflita, para o muro que, do lado em que se encontrava, era liso que só visto. Nem uma mísera reentrância para pôr um pé, ou uma pedra saliente para se agarrar. O coração batia cada vez com mais força, os olhos marejados de lágrimas. Sabia que só passando frente à casa e transpondo o portão que dava para o caminho conseguiria sair. Contou até três e desatou a correr, as mãos agarrando o bibe-fruteira. Enquanto abria, nervosamente, o portão, e se esgueirava a custo para correr em direcção a casa, ouviu a voz da Sra. Rosalina dirigindo-se-lhe em tom alto e divertido:
- Ai tu andaste-me a limpar o castanheiro? Podias ter dito que te abria o portão!



18 comentários:

  1. Então...

    Se for lá
    será
    Que a Rosalina me abre o portão?

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    1. Agora é a filha. A Rosalina já só abre portões na eternidade.

      Beijinhos, Rogério.:)

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  2. Ora ainda bem que a Srª Rosalina até achou graça...

    Bom fim de semana :)

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    1. Quem sabe se divertia a ver a miúda nas suas incursões ao muro e ao quintal! ;)

      Beijinhos, São. :)

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  3. Mais uma história deliciosa a fazer-me lembrar os tempos de ganapo, quando alinhava em aventuras de ir aos morangos da d. Silvina e outra fruta sem entrar pelo portão da frente. Coisas inocentes que davam pica na infância e adolescência.
    A Maria expressões que são mimos raros.
    BFS

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    1. Eram tempos de uma alegria ingénua, Agostinho.
      Muito obrigada!

      Beijinhos. :)

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  4. "Saboreio este dia,
    Fruto roubado no pomar do tempo.
    Sabe-me a novidade,
    Deixa-me os lábios doces.
    Tem a polpa de sol, e dentro dele
    Calmas sementes de outro sol futuro.
    Cheira a terra lavrada e a maresia.
    E tão livre e maduro,
    Que quando o apanhei já ele caía."
    Miguel Torga

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    1. É lindo, este poema!
      Muito obrigada, Manel!
      Torga é um homem da terra, como a Clarinha e a Sra. Rosalina são mulheres da terra.

      Beijinhos. :)

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  5. Esta pequena história, de uma ternura tão pueril, lembrou-me o final daquela história de suspense da Miss Smile.
    São muito bons, estes momentos de leitura, Maria.

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    1. Apontamentos de infância numa aldeia.
      Muito obrigada, Costureira.

      Beijos. :)

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  6. Gosto tanto de ler as tuas estórias. Têm cheiros e sabores :)
    Um beijo Maria

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  7. Esta altura do ano enche o ar de deliciosos aromas. Aquele cheiro da lenha a queimar na lareira, das castanhas assadas, dos marmelos cozidos com um pauzinho de canela. E o cheiro da terra molhada depois de uma chuvada e da erva acabada de cortar…
    Realmente o Outono consegue despertar os sentidos, com os cheiros, com os sabores, as cores…e esta sua bela história fez-me recordar tempos passados da minha na infância e adolescência.

    Boa semana, Maria!;))

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    1. Tempos de descuidada alegria!

      Beijinhos, Legionário, e uma boa semana. :)

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  8. Escreves muitíssimo bem...as tuas palavras são, invariavelmente, simples mas muito profundas.
    Acho que começo a apaixonar-me por ti...mas não é preocupante, já que sou um gajo casado!

    :)))

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    1. Obrigada!
      Ainda bem, porque só terias desgostos! :))))

      Beijinhos, Jorge.

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  9. Castanhas não as havia para os meus lados mas pêssegos, ameixas e muros para saltar...
    Bons tempos!

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    1. O encantamento das memórias de infâcia!

      Beijinhos, Rui. Gostei de te ver aqui! :)

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