quarta-feira, março 31, 2021

Diminutivo

 

(Marc Chagall)

Efigénia da Conceição crescera devagar nas sombras da casa grande. Das raras vezes em que se agarrara à saia da mãe, logo levara um arrepelão.

- Sai-te p`ra lá, Efigénia da Conceição!

Julgar-se-ia que a pequena seria chamada por Gena, Geninha, Efi, São, Sãozinha, mas não, o nome completo, assim duro e escorreito, não fosse a miúda habituar-se a mimos desnecessários.

Foi-se fechando, fechando, até que deixou de “aparecer” que não fosse para se sentar na ponta da mesa da cozinha, à espera do prato de sopa e de mais qualquer sobra que houvesse para levar à socapa para o Malhado e a para a Micas, canitos seus companheiros de escapadelas campestres.

Num instante, Efigénia da Conceição era adolescente, rapariga feita, mulher. Porém, nenhuma das mulheres da casa parecia aperceber-se da sua existência. Sombra nas sombras, olhar triste e carregado.

Nem ela nem as outras repararam que, do outro lado do muro, a coberto das frondosas trepadeiras, uns olhos vivos lhe acompanhavam o crescimento e a tristeza. Um dia, o sol de uma Primavera quente e soalheira levou-a à sombra do caramanchão e, de repente, o dono dos olhos vivos chamou: Geninha! Geninha!

 

Assim começou a fazer-se ternura na vida de Efigénia da Conceição.


(Ballaké Sissoko & Vincent Ségal "a benim kahve sesli, ince sızım" )

quinta-feira, março 25, 2021

Castanhas e figos

 

(imagem daqui)


Morreu-me o castanheiro sem aviso. Os ouriços emprenharam de castanhas, e vieram, como de costume, atapetar em círculo o espaço por baixo da copa. Eram pequenos, os frutos, sei bem, mas doces. Bastou uma trintena de dias. Em subindo a rampa, rente ao muro, a visão do tronco seco, encimado pelos ramos despenteados e hirtos, sem que o vento os fizesse, sequer, estremecer.

Morreu-me o castanheiro. E a figueira, namorada de sempre, começa a dar sinais de querer segui-lo.

Não hei-de comer de outras castanhas ou figos enquanto me não crescerem as árvores que plantar!


(Max Richter - Non-Eternal)

quinta-feira, março 11, 2021

Gaivota

 

(Imagem daqui)

De quando em vez, Maria Clara gostava de escapar à tristeza dos dias sem luz e abrir os olhos do lado de dentro, onde habitavam sempre o mar, as dunas, o azul intenso do céu de Verão e as gaivotas em voos feéricos, à espreita do peixe.

Quem a observasse, diria que dela se apoderara um sono profundo.

Foi num destes dias que Maria Clara se viu num sol da manhã, pés descalços e sandálias na mão, caminhando rente à babugem das ondas, que vinham salpicar-lhe as pernas. Demorou-se ali, o horizonte largo, um navio cargueiro a acompanhar essa linha, o cheiro intenso a algas.

Sabia que não estaria só por muito tempo. Ali, nunca estava sozinha. Afinal, uma gaivota não voa sozinha.

 

(Anoushka Shankar - Bright Eyes ft. Alev Lenz)

sexta-feira, março 05, 2021

Pássaros


(Jessica Pisano)


    Andam                                      da cidade

pássaros           ruas

        nas 


 

Há ruas                                pássaros

  da                      com

   cidade 


                          

Anda                                    de pássaros

 a                    cheia

cidade  

 


Viste a cidade cheia de  pá        ros?

                                                  ssa


(Mari Samuelsen – Einaudi: Una Mattina)