terça-feira, fevereiro 23, 2021

De dentro para fora

‘Blind Curve’ (2010) © Felix Lucero

O que fazer se me faltam as palavras? Sei que as tinha, algures, guardadas numa inesgotável fonte de águas claras. Aos poucos, a água foi escasseando, talvez a tenham confinado em lugar incerto. Ou tê-la-ão levado por outros caminhos que não este? Haverá alguém que a use e às palavras que eram minhas, noutra “prisão” que não aquela em que me enclausuro?

Há pássaros em gorjeios à desgarrada fazendo-se ouvir através dos vidros. Sons de obras à mistura com o troar de motores mais potentes, na via rápida. Uma mulher de voz alterada grita que não aguenta mais, ao que outra voz, masculina, responde que não tem culpa.

Da varanda, onde as plantas começam a florir timidamente, vê-se a rua deserta. Por entre os prédios de dez andares, uma nesga de verde, um monte encimado por uma igreja branca. Serpenteante, a estrada estreita que sobe até ao templo faz um recorte no pinhal, um desenho cheio de curvas e contracurvas, como o que traçam os meninos para fazerem pistas de automóveis e brincarem aos pilotos.


(Gabor Szabo - Dreams)

5 comentários:

  1. O Miguel Sousa Tavares dizia que poupava as palavras que não gastava a conversar para depois escrever.
    Bjs

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  2. Não se preocupe em encantar-nos com elas, deixe-as só fluir.
    ~CC~

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  3. Quando faltam as palavras faz-se um gesto

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  4. Sem palavras, ouvimos o silêncio habitado por todos os gritos, por todas as dádivas, por todas as emoções. E deixamos que a Natureza nos maravilhe. Lindo e inspirador, o seu texto.
    Uma boa semana com muita saúde.
    Um beijo.

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  5. Não acredito nessa das palavras finadas do confinamento.
    Para mais com o vento a soprar no décimo andar
    tanta conversa a subir e a descer no elevador.
    Vé-se o que nunca foi visto.
    Bj., Maria.

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