quarta-feira, janeiro 23, 2019

A palavra inquieta

(Sonia Firlej)


Havia a palavra, atravessando-lhe o peito, subindo-lhe à garganta, rolando como mel na língua. Era doce, a palavra, a instantes. Não fora o acerado de que se travestia tantas vezes e afogar-se-ia nela, assim dourada, açucarada.
Esperava por ela em equilíbrio periclitante, em cima de uma cadeira. Assim, teria que ser uma enxurrada para poder submergi-la.


sexta-feira, janeiro 11, 2019

Viagem

(Damian Hovhannisyan)

Eram tempos difíceis. Os dias escorriam por paredes cinzentas, onde pontuavam janelas estreitas, com vidros sujos, que nem sequer coavam a luz, antes a transformavam em nuvens carregadas de poeira densa e opaca.
Costumava fingir que o relógio em cima do armário funcionava. Dava-lhe um certo consolo que os ponteiros marcassem uma hora tão próxima daquela em que, finalmente, abandonava o edifício, pesasse, embora, o engano permanente da avaria.
Naquele dia, amanhecera com um estranho apetite de outras paragens. Prudentemente, levou uma mala de viagem. 
Quando, uma semana depois, estranharam a sua falta e resolveram abrir a mala que repousava junto do relógio, descobriram-na lá, em posição fetal, abraçada a um livro de poemas.


segunda-feira, janeiro 07, 2019

Bordado

(Ana Teresa Barboza)


Era de uma nudez ostensiva e branca, de uma daquelas brancuras onde o emaranhado das veias transparecia acintosamente. Diziam-lhe que devia cobrir-se, evitar expor a olhares alheios uma tal crueza. Sem saber como camuflar-se, aprendeu a bordar, desenhando flores na pele a agulha e linha.