terça-feira, março 27, 2018

Ressurreição



(Tina Maria Elena)


Arderam num incêndio de tal forma prolongado que nada restou senão cinzas. Dispersaram-se, juntas, levadas pelo vento, e perderam-se no mar. 
Diz-se que, nas noites de luar, eles regressam à praia, erguendo-se da espuma das ondas, e se deitam juntos, até arderem de novo, uma e outra vez.


domingo, março 18, 2018

Mãos de dar


(Stephen Morris)

Do seu menos de um metro de altura, esticava-se, em bicos de pés, para beijar o rosto jovem da sua mãe. Depois, ela dava-lhe a mão e seguiam, tagarelando.

Do alto da sua altura adulta, dobrava-se, joelhos quase a tocar o chão, para beijar o rosto enrugado da sua mãe. Depois, sentava-se ao lado da cama, segurando-lhe a mão, enquanto lhe contava do mundo lá fora.


terça-feira, março 06, 2018

Dos momentos felizes

(Joan Miro)

Já fui feliz:
a colher malmequeres amarelos e a fazer deles grinaldas e colares de princesa;
a trepar às figueiras e cerejeiras para comer frutos maduros; 
a fazer casas nas árvores, bonecas em espanto suspensas nos ramos;
a saltar à corda, jogar à macaca e ao pião nos caminhos da aldeia;
a brincar na areia da praia, e a chapinhar na água do rio e do mar;
a ler noite dentro toda a espécie de livros, até de lanterna, debaixo dos lençóis;
a aninhar-me na cama dos meus pais ao Domingo de manhã;
a cantar e  a rir ruidosamente, na cozinha, com a irmã e a mãe;
a sonhar com o rapaz de sorriso bonito que morava na mesma rua;
a ouvir discos de vinil de música francesa e programas de rádio;
a comer arroz de grelos com chouriça e bolo de canela à sobremesa;
a andar nos carrinhos de choque e no carrossel em festas populares;
a dar as mãos, coração em sobressalto, sem que ninguém visse;
a beijar e a ser beijada, sempre como se fosse a primeira vez;
a imaginar o rosto do meu filho, ainda por nascer;
a tê-lo nos braços, ainda enrugado, mesmo que a chorar;
a ver lugares, edifícios, arte e povos diversos;
a manifestar-me, bandeiras e slogans, pelos direitos (meus e de outros);
a aninhar-me nos braços  de quem amo;
...
Já fui tão feliz!


domingo, março 04, 2018

Da noite dolorosa

(rhythm of pain Painting by Bing Lk)

Sabia-se perecível. Os sinais estavam todos lá. Noites pintadas a negro com laivos laranja de dor, os nervos, tensos, em miados silenciados por garras na garganta. Enrolava-se numa bola, os joelhos de encontro ao peito, abraçados, como a um amante prestes a despedir-se de uma noite de amor desvairado.
A madrugada costumava vir de rompante, cegando-a, por mais débil que fosse a luz. Esperava pela manhã cerrando os olhos com força, alimentando-se da amargura das horas vazias e, ao toque do despertador, sacudia o corpo, lavava a alma juntamente com ele, maquilhava ambos e saía para trabalhar.