Do seu menos de um metro de altura, esticava-se, em bicos de pés, para beijar o rosto jovem da sua mãe. Depois, ela dava-lhe a mão e seguiam, tagarelando.
Do alto da sua altura adulta, dobrava-se, joelhos quase a tocar o chão, para beijar o rosto enrugado da sua mãe. Depois, sentava-se ao lado da cama, segurando-lhe a mão, enquanto lhe contava do mundo lá fora.
Já fui feliz: a colher malmequeres amarelos e a fazer deles grinaldas e colares de princesa; a trepar às figueiras e cerejeiras para comer frutos maduros; a fazer casas nas árvores, bonecas em espanto suspensas nos ramos; a saltar à corda, jogar à macaca e ao pião nos caminhos da aldeia; a brincar na areia da praia, e a chapinhar na água do rio e do mar; a ler noite dentro toda a espécie de livros, até de lanterna, debaixo dos lençóis; a aninhar-me na cama dos meus pais ao Domingo de manhã; a cantar e a rir ruidosamente, na cozinha, com a irmã e a mãe; a sonhar com o rapaz de sorriso bonito que morava na mesma rua; a ouvir discos de vinil de música francesa e programas de rádio; a comer arroz de grelos com chouriça e bolo de canela à sobremesa; a andar nos carrinhos de choque e no carrossel em festas populares; a dar as mãos, coração em sobressalto, sem que ninguém visse; a beijar e a ser beijada, sempre como se fosse a primeira vez; a imaginar o rosto do meu filho, ainda por nascer; a tê-lo nos braços, ainda enrugado, mesmo que a chorar; a ver lugares, edifícios, arte e povos diversos; a manifestar-me, bandeiras e slogans, pelos direitos (meus e de outros); a aninhar-me nos braços de quem amo; ... Já fui tão feliz!
Sabia-se perecível. Os sinais estavam todos lá. Noites pintadas a negro com laivos laranja de dor, os nervos, tensos, em miados silenciados por garras na garganta. Enrolava-se numa bola, os joelhos de encontro ao peito, abraçados, como a um amante prestes a despedir-se de uma noite de amor desvairado. A madrugada costumava vir de rompante, cegando-a, por mais débil que fosse a luz. Esperava pela manhã cerrando os olhos com força, alimentando-se da amargura das horas vazias e, ao toque do despertador, sacudia o corpo, lavava a alma juntamente com ele, maquilhava ambos e saía para trabalhar.