O vento sibila agudamente ecoando nas persianas, corridas na previsão de tempestade. Bátegas intensas de chuva castigam as paredes e as grades da varanda, compondo uma música ensurdecedora. Marta encolhe-se no sofá, manta de xadrez vermelho e bege agasalhando-lhe as pernas, sem conseguir ler o livro que comprara no dia anterior, Confissões de uma máscara, de Yukio Mishima.
Não passara da primeira frase: "Durante muito tempo, sustentei que era capaz de me lembrar de coisas que tinha visto na altura do meu nascimento."
Fosse da fúria do temporal ou da incapacidade de avançar para além destas parcas palavras, Marta sentiu-se como que viajando no tempo, até ao momento exacto em que o médico a puxava de dentro da mãe. Os olhos cegos pela luz e pelos fluídos, o corpo dorido da curta mas dura odisseia, o golpe no cordão umbilical, o grito a custo arrancado da garganta minúscula, boca escancarada, sinal da vida, sua, princípio. A estranheza do ar nos pulmões, da roupa que lhe tolhia os braços e as pernas. Os cheiros. Meu Deus, os cheiros intensíssimos a invadi-la, a confundi-la. Mãos. Muitas mãos no seu corpo cansado e tenro. O sossego breve no peito da mãe, a voragem da fome na aproximação inexperiente aos mamilos castanhos e túrgidos.
O vento acalmara. A chuva era agora mais mansa. Marta dorme, como dormira nesse dia primeiro, rendida ao cansaço.
O texto e a canção são absolutamente sublimes!
ResponderEliminarBoa semana
Não é canção, é banda sonora.
EliminarDead Can Dance, tantos anos depois, ainda são um must.
Obrigada, Pedro!
EliminarDead Can Dance são um clássico, embora nem todos apreciem.
Beijinhos :)
Muito bom :)
ResponderEliminarObrigada, CC!
EliminarBeijinhos :)
Um texto fantástico e muito belo! Como se fosse capaz de recordar o momento de nascer...
ResponderEliminarUma boa semana.
Beijos.
Obrigada, Graça! Muito.
EliminarBeijos e uma boa semana para ti, também. :)
I'm always amazed at Picasso's early works.
ResponderEliminarNow there's someone else who loves Dead Can Dance.
(I thought I was the only one.)
Have a great week, Maria.
xx
They have a lot of fans among my friends, Rick!
EliminarHave a fantastic week too!
Kisses :)
De tempos em tempos devíamos retornar ao útero materno...há tempos em que, como no momento do nosso nascimento, o ar nos pesa, nos sufoca, como nos faltasse. Nos faz chorar como a criança que pela primeira vez sente a pressão do ar a tocar a pele e invadir seu corpo pelas narinas destreinadas.
ResponderEliminarFoi bom recordar Dead Can Dance, Maria:))
Ficarmos ao abrigo das intempéries da vida...
EliminarSão bons, não são?
Beijinhos, Legionário :)
Que linda frases estão a ler na tela .A nossa primeira viagem
ResponderEliminarUm abraço
Obrigada, alfacinha!
EliminarBeijos :)
simbiose perfeita: texto e música :)
ResponderEliminarboa semana, Maria
Nem imaginas o tempo que procurei uma música que se adequasse! Obrigada!
EliminarBeijos, Laura :)
Um texto fantástico e admirável pela exímea criatividade,
ResponderEliminaracompanhado de uma tela belíssima de Picasso e uma música
exótica muito agradável.
Mais uma postagem excelente.
Ótima semana, Maria.
Beijos
~~~
Grata, Majo!
EliminarBeijos :)
se eu pudesse renascer, faria tudo ao contrário.
ResponderEliminarlindo sonhar sonhado nas palavras
teremos memórias de quando lá dentro
sonhos quem sabe...
bom ouvir os Dead Can Dance, associados que estão
à imortalidade, ao nascer e morrer, à vida :)
Só podemos i9maginar, não é?
EliminarQuanto aos Dead Can Dance, só posso corroborar.
Beijinho, Black Angel, e obrigada. :)
Fiquei preso à leitura do texto, magnífico e muito interessante ! …. Uma espécie de "regressão ao passado" (neste caso ao nascimento), usada muitas vezes, por especialistas, para libertação de alguns traumas actuais!
ResponderEliminarSabe-se que esse processo se inicia pela indução a estado modificado da consciência, através do relaxamento físico e mental do paciente. A pessoa tem a oportunidade de se consciencializar daqueles traumas do passado que lhe causaram um problema atual.
Não sei se isso mesmo pode acontecer num estado solitário de repouso e relaxamento(?) tal como aconteceu com Marta. (?)
Esse livro deve ser extremamente interessante !
Sabe-se que Mishima tinha uma “personalidade de género”, fora dos padrões gerais e que este livro possa conter, provavelmente, algo de auto biográfico. (?)
Mishima seria capaz de se apaixonar e ter uma devoção espiritual por mulheres e no entanto, não ter por elas qualquer apelo sexual, o que não acontecia relativamente aos homens, por quem sentia um enorme desejo .
Daí, talvez o título do livro ! (?)
A Mystical Rain e a imagem (Picasso !... Quem diria ?), muito bem escolhidas.
Beijo, Maria Eu :)
A "regressão" da Marta, é fruto da minha imaginação.
EliminarQuanto ao livro do Mishima, estou a gostar imenso. Nada fácil, mas extremamente interessante e um num registo que sai do tipo de literatura a que nos habituamos. Uma cultura tão diversa tem que o ser na escrita, também.
Beijinhs, Rui, e obrigada pelo detalhado comentário. :)
Maria,
ResponderEliminaro texto está fantástico.
a escolha da música foi também excelente.
:)
beijo
Muito obrigada, Chinezzinha!
EliminarBeijos :)
Eis uma viagem que um homem nunca ensaiará, não lhe toca a natureza fazer um homem passar por tal
ResponderEliminarAh, mas que saiba, ao menos, acarinhar o cansaço de Marta
e já não será coisa pouca
Quanto ao vento,
esse,
não tem sexo
Haja imaginação e todas as viagens serão possíveis, Rogério!
EliminarBeijinhos :)
Que maravilha Maria. A paz depois da tempestade :)
ResponderEliminarNada como um sono reparador e curativo.
EliminarBeijos, GM, e obrigada. :)
Excelente, Maria!
ResponderEliminarNão sei se Marta alguma consegue fazer a regressão ao momento zero da sua própria existência, mas tu, Maria, conseguiste fazê-lo com uma beleza estimável. A partir de uma frase (que desconheço) de Mishima.
É mesmo assim. Deparamo-nos, a cada passo, com palavras que nos fazem parar, que nos fazem entrar por mundos antes inimagináveis. O mundo é grande. Dentro de nós próprios, tão grande!
Bj.
De facto, Agostinho, é dentro de nós que se encerram os maiores mistérios, as maiores aventuras. Talvez, ainda mais, quando nunca nos permitimos vivê-los. Escrevamos, então, tornando-os reais e partilhando-os com aqueles que sentirem algum prazer nisso.
EliminarBeijinhos, com gratidão. :)