sábado, agosto 29, 2015

Aos vindouros

(André Kertész)


AOS QUE VIEREM DEPOIS DE NÓS 

Bertolt Brecht 
(Tradução de Fernando Peixoto) 

É verdade, eu vivo num tempo sombrio! 
Uma palavra sem malícia é sinal de tolice. 
Uma testa sem rugas é sinal de indiferença. 
Aquele que ri 
Ainda não recebeu a terrível notícia. 

Que tempos são esses, quando 
Falar sobre árvores é quase um crime 
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça? 
Aquele que atravessa a rua tranquilo 
Já está inacessível aos amigos 
Que passam necessidades? 

É verdade: eu ainda ganho bastante para viver. 
Mas acreditem: é por acaso. 
Nada do que faço 
Me dá o direito de comer quando tenho fome. 
Estou sendo poupado por acaso. 
(Se a minha sorte me deixa, estou perdido.) 

Me dizem: come e bebe! 
Fica feliz por teres o que tens! 
Mas como é que eu posso comer e beber 
Se a comida que como, tiro de quem tem fome? 
Se a água que bebo, faz falta a quem tem sede? 
Mas mesmo assim, eu como e bebo. 

Eu queria ser um sábio. 
Nos livros antigos está escrito o que é a sabedoria: 
Se manter afastado dos conflitos do mundo 
E passar sem medo 
O curto tempo que se tem para viver; 
Seguir seu caminho sem violência; 
Pagar o mal com o bem; 
Não satisfazer os desejos, mas esquecê-los. 
Sabedoria é isso! 
Mas eu não consigo agir assim! 
É verdade, eu vivo num tempo sombrio! 

Eu vim para a cidade no tempo da desordem 
Quando a fome reinava. 
Eu vim para o convívio dos homens no tempo da revolta 
E me revoltei ao lado deles. 
Assim se passou o tempo 
Que me foi dado viver sobre a Terra. 

Eu comi o meu pão no meio das batalhas. 
Para dormir, eu me deitei entre os assassinos. 
Fiz amor sem muita atenção 
E não tive paciência com a Natureza. 
Assim se passou o tempo 
Que me foi dado dado viver sobre a Terra. 

No meu tempo as ruas conduziam ao lodo, 
E as palavras me denunciavam ao carrasco. 
Eu podia muito pouco, mas o poder dos patrões 
Era mais seguro sem mim, espero. 
Assim se passou o tempo 
Que me foi dado dado viver sobre a Terra. 

As forças eram limitadas. 
O objectivo permanecia a uma longa distância. 
Era nitidamente visível, mas para mim 
Quase fora do alcance. 
Assim se passou o tempo 
Que me foi dado dado viver sobre a Terra. 

Vocês, que vão emergir 
Das ondas em que nos afogamos. 
Pensem, quando falarem das nossas fraquezas, 
Dos tempos sombrios de que tiveram a sorte de escapar. 
Nós existíamos através das lutas de classes, 
Mudando mais de país do que de sapatos, 
Desesperados quando só havia injustiça 
E não havia revolta. 

Nós sabemos: 
O ódio contra a baixeza 
Também endurece o rosto; 
A cólera contra a injustiça 
Também faz a voz ficar rouca. 
Infelizmente nós, 
Que queríamos preparar o terreno para a amizade, 
Não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos. 

Mas vocês, quando chegar o tempo 
Em que o Homem seja amigo do Homem, 
Pensem em nós 
Com simpatia.





Assim se esperava que aqueles que viessem pudessem escapar aos tempos sombrios. Contudo, os tempos são, ainda, por estes dias, de sombra.

14 comentários:

  1. A atualidade do texto nem precisa de ser mencionada. Os tempos sombrios, não só não nos abandonaram, como regressaram com uma força redobrada, infelizmente. Parece-me que tivemos direito apenas a uma pequena trégua, e que dias de escuridão se preparam para nos desassossegarem.
    Boa noite, Maria Eu.
    Um beijinho, Mia

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Temos que nos armar de luz!

      Beijos, Mia, e boa semana. :)

      Eliminar
  2. Só sabemos desses tempos
    porque admitimos a existência de claridades

    Hoje estive num espaço
    de plenas amizades

    onde o Homem é amigo do Homem

    (hoje chegou o teu dia, Maria)

    ResponderEliminar
  3. O BB sabia que tínhamos entrado numa era de treva, é a esperança inquebrantável que o leva a escrever poemas para o futuro como este. Oxalá a sua esperança seja realidade, e as núvens que agora vemos abaterem -se em tempestades tão perto de nós possam dissipar-se.
    Beijos Maria!

    ResponderEliminar
  4. Se não aprendermos como caminhar durante os tempos difíceis, e a enfrentar de forma tenaz as adversidades e os contratempos da vida, estaremos derrotados antes mesmo de começar.

    Boa semana Maria! :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Verdade, Legionário! Mas que dói, dói!

      Beijinhos e uma boa semana para ti também. :)

      Eliminar
  5. Olá, Maria.
    "Mas mesmo assim, eu como e bebo" - nem bem sei como, trouxe-me à lembrança os versos de um "hino" brasileiro - e não só, diria eu - de Geraldo Vandré:
    "Pelos campos há fome
    Em grandes plantações
    Pelas ruas marchando
    Indecisos cordões"

    https://www.youtube.com/watch?v=6oGlRrJLiiY

    bom domingo,
    bjn amg

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigada pela partilha, Carmem! Gostei muito!

      Beijos. :)

      Eliminar
  6. Talvez os tempos não sejam nem mais nem menos sombrios.
    Só com algum distanciamento temporal, é possível fazer uma análise mais objectiva e desapaixonada.
    E concordo com o entendimento do Legionário.
    Beijo, Maria.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não sou pessimista mas tem-me doído o coração nestes dias...

      Beijos, Isabel. :)

      Eliminar
  7. Até quando a maldição que ensombra o caminho? Onde há uma flor o homem espalha dor.
    Boa semana, Maria. Ainda há esperança.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olhamos para a História e tudo isto é cíclico. Parece que o Homem não consegue parar o ódio.

      Beijos, Agostinho. :)

      Eliminar