domingo, março 15, 2015

Morte súbita

(Paulette Tavormina)

Tinha recebido a carta na Segunda-feira e, apesar de ser já Domingo, não a abrira. A letra elegante e levemente inclinada para a direita do endereço era-lhe por demais familiar. Fora buscar a correspondência, como era hábito, à caixa de correio do portão da quinta. Chovia. Havia uma quantidade infernal de prospectos publicitários e, no meio deles, o envelope branco, onde ressaltava a letra azul com o seu nome e endereço. Não constava remetente, nem seria preciso.
O almoço foi lauto. Mesmo sozinha, dera-se ao trabalho de assar uma perna de cordeiro com batatinhas novas, polvilhadas com tomilho, e de saltear grelos em azeite e alho. A ementa pedia um vinho tinto. Abriu uma garrafa de Chryseia 2009 e bebeu com prazer, deixando-a pela metade. O envelope, pousara-o frente ao prato, onde o podia ver. Já estava em mau estado, de ter sido guardado no bolso do casaco de malha durante dias.
"- Abro-o depois da sobremesa." pensou, enquanto escolhia um figo na fruteira.

Maria do Carmo abriu as janelas de par em par, deixando entrar o sol a jorros na sala. Era tempo de arrumar os pertences da mãe. A sua morte súbita deixara-a com um buraco no peito e a casa permanecera fechada desde o funeral, há mais de um ano. Na sala de jantar, chamou-lhe a atenção uma mancha branca junto à carpete onde assentava a mesa. Baixou-se para ver melhor e, puxando-a, descobriu um envelope com o nome da mãe e o endereço escritos a azul, numa letra elegante e inclinada para a direita. Tinha sido aberto cuidadosamente, pois não apresentava sinais de rasgado. Puxou a carta que continha. 

Meu amor

Nunca te esqueci. Soube-te só.
Amanhã, depois destes anos todos, abraçar-te-ei.

Teu,
José António




Nunca se chegaram a abraçar.

12 comentários:

  1. .

    .

    . belíssimo e intimista . reservado e contextual . como um desvelo . a clarear o dia . :) .

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    . um bom.domingo .

    .

    . um beijo meu .

    .

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  2. Vem o Outono mansamente com seus frutos e de repente é Inverno.

    Também gosto do vinho do Douro e da Touriga Nacional. A memória que tenho das tabernas antigas é feita com o odor da poalha húmida do carvão e o vinho do lote cuja base era a Touriga Nacional.

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    1. As Estações sucedem-se velozmente.

      E o serrim a cobrir o chão? :)

      Beijinhos, Luís. :)

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  3. Existir é tudo e não existir é nada...

    Boa semana, Maria! :)

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  4. Hoje já não se escrevem cartas
    Sem que por isso o coração seja mais resistente....

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    1. O coração tem sempre as suas fragilidades.

      Beijinhos, Rogério. :)

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  5. Que frio, que desgosto a matou?
    A ausência do amor?
    Aquela mulher, carente, quis celebrar o amor que lhe chagara de longe -
    marido emigrado? Vidas.

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    1. Talvez o saber-se amada, assim, de repente.

      Beijinhos, Agostinho. :)

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  6. A força que teria esse abraço se tivesse acontecido!
    Momento que valeria pela vida.
    Beijo Maria

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    1. Talvez fosse essa força imaginada que fez o coração falhar...

      Beijo, I. :)

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