sábado, fevereiro 28, 2015

Aplausos

(Konstantin Bessmertby)

O público não confia em si; confia nos outros. Quando ouve alguém aplaudir com muita agressividade e intensidade, julga que algo de extraordinário, que não entende muito bem, está a ocorrer. Sente que não deve parecer ignorante, que se deve juntar ao aplauso para que ninguém perceba que não chegou lá.

(Tradução de Maria Eu)

Constança nunca gostara particularmente de jazz, muito menos de jazz mais contemporâneo e minimalista. Enfadava-a aquela música que lhe parecia desconexa, com os músicos em improvisações a sobreporem-se umas às outras, num acto que lhe soava tudo menos melódico. Aceitou, porém, o convite de João para assistir ao concerto de uma banda Norueguesa de renome. João olhava-a, encantado, enquanto ela se juntava à plateia nos aplausos entusiásticos. Se soubesse ler-lhe o pensamento...

sexta-feira, fevereiro 27, 2015

Negrume


(Jorge Pinheiro)

Maria Antónia levantava-se a cada manhã como se fosse a última. Não pela força que punha nos gestos ou pela alegria no olhar mas pela raiva com que se vestia de negro e pelo luto que lhe devorava a alma.

quinta-feira, fevereiro 26, 2015

Rebirth / Renascimento

(Michael Lentz)

She felt the blood in her mouth, sweet and sour.

She tasted it, she soaked in it, she drowned in it.

And then, miraculously, she emerged,

stained in red. However, blood doesn't gush if there's no wound!





Sentiu o gosto do sangue na boca, agridoce.

Saboreou-o, encharcou-se nele, afogou-se nele.

E, logo de seguida, miraculosamente, emergiu

manchada de vermelho. Porém, o sangue não jorra se não houver ferida.

Maria Eu

quarta-feira, fevereiro 25, 2015

De papel

(Helena Santos)



De repente, rasga-se por dentro como papel de seda. Sempre se soubera frágil, sujeita a quedas e joelhos esfolados mas nunca supuseras que a carne, o músculo, o osso, fossem, afinal de contas, papel.



terça-feira, fevereiro 24, 2015

Ao menos que...

(Gianni Monteleone)


Ana nascera num tempo em que as mulheres cresciam em malhas apertadas, ensinadas pelas mães e vigiadas de perto pelos pais e pelos irmãos. Adorava cantar e dançar. Fazia-o à socapa, ensaiando passos irreverentes no quarto, ao som da telefonia que o irmão mais velho ouvia no sótão, e deixando a voz soltar-se a plenos pulmões nas correrias pelos campos. A mais nova de dez irmãos, foi-os vendo partir, de festa em festa de casamento, embalada no sonho de ser levada também por um homem garboso que soubesse dançar e lhe desse filhos aos quais embalasse com canções. Ele veio, o seu homem. Bonito, garboso, apaixonado. No enxoval, uma máquina de costura e uma telefonia. Ana mal podia esperar pelas noites em que, depois de jantar, arrumada a cozinha, ele a abraçasse pela cintura e a arrebatasse em danças sem fim.

Ana não sabia que aquele homem, tal como o pai e os irmãos, nunca iria deixá-la dançar, que isso de dança era no namoro. Ao menos, suspiraria ela uns anos depois, enquanto costurava um vestido às pregas e ouvia histórias de amor na telefonia, ao menos pude embalar os meninos cantando.


segunda-feira, fevereiro 23, 2015

L'ancanto de las lénguas


Hai lénguas que se stranhan mas que, oubidas, se entranhan. Ouçamos, pus, l canto dua léngua resistente.

sábado, fevereiro 21, 2015

Do desejo de voar

(Geoffrey Johnson)

"Há uma rua, um pouco mais acima, onde gostaria de voltar um dia. Segui por essa rua nessa manhã. (...) Mais adiante a rua desembocava no céu, como se conduzisse à beira de uma falésia. Avançava com o sentimento de leviandade de que por vezes somos acometidos nos sonhos. Não tememos nada. Todos os perigos são irrisórios. SE as coisa correm realente mal, basta-nos acordar. Somos invencíveis. (...) Em breve alcançaria a falésia e lançar-me-ia no vazio. Que felicidade, pairar no ar e conhecer finalmente aquela sensação de ausência de gravidade que sempre procurara."

Patrick Modiano, in "No Café da Juventude Perdida"




Desde sempre havia nela um secreto desejo de voar. Tivera até, um dia, a sensação de que lhe cresciam asas. Sentiu uma dor aguda nas costas, precisamente ali, onde elas deviam ficar, prontas a abrirem-se e a bater, levando-a a sobrevoar o mar, para além da falésia. Certo é que a dor ficou e as asas nunca apareceram. Valiam-lhe os sonhos.

Refúgio

(Jorge Gay)


Que melhor refúgio para os meus cansaços do que a curvatura dos teus (a)braços?


quinta-feira, fevereiro 19, 2015

Amiga

(Abbott Handerson Thayer)

De ti, ficarão os anos de juventude, as gargalhadas, as lágrimas, as palavras (tantas que elas foram). De ti, ficarão apenas as coisas boas porque não há que recordar mais nada. A doença, a dor, essas desapareceram, por fim.
Um dia, minha amiga, um dia ainda vamos encontrar-nos num sítio qualquer com que nenhuma de nós alguma vez sonhou e rir, rir muito!


quarta-feira, fevereiro 18, 2015

Afectada

"Havia um poeta afetado. Era ele mesmo quem a assumia - a sua afetação - argumentando que todos os poetas são por condição afetados. De outro modo não seriam poetas. (Este argumento afetava muita gente. E nem todos eram poetas). O que os torna poetas - explicava ele - é justamente essa capacidade de se deixarem afetar. Depois perguntava, afetivamente:
- Mas quando a poesia não te afeta, é poesia?
O poeta afetado era também um poeta infetado. Consequência da boa vida que levavam alguns poetas:
- Todos os poetas são por condição infetados - dizia.

Mas ninguém se deixe por isso afetar.

Havia um poeta afetado. Quando se queixou ao médico, ele receitou-lhe medicamentos e recitou-lhe uma pergunta:
- Mas quando a poesia não lhe apanha os rins, é poesia?"

Joana Bértholo, in "Havia"




De quando em vez a poesia afecta-me. Serei, por isso, afectada? E, sendo-o, afectarei alguém? 

terça-feira, fevereiro 17, 2015

Conselho 3


"Era uma vez duas serpentes que não gostavam uma da outra.Um dia encontraram-se num caminho muito estreito e como não gostavam uma da outra devoraram-se mutuamente.Quando cada uma devorou a outra não ficou nada.

Esta história tradicional demonstra que se deve amar o próximo ou então ter muito cuidado com o que se come."

in Almanaque de Santo António, 2002


Nunca confies numa serpente, elas comem-se uma às outras e, se puderem, ainda te comem a ti!

segunda-feira, fevereiro 16, 2015

Da identidade


(Sivan Sternbach)

Identidade

A identidade, como a pele,
renova-se, perde-se de sete
em sete anos, muda no mesmo
corpo, torna diferente
a permanência humana.
A identidade é a soma
das intenções, uma foto
instantânea para um propósito
imediato que não dura.
A identidade é um equívoco
para camuflar o coração.


Pedro Mexia, in "Duplo Império"




Coração

O coração, ao contrário da pele,
não se renova ou perde de sete em sete anos.
Transforma-se ao sabor dos sentimentos,
torna excitante a permanência humana.
O coração pulsa, tem ritmo, fica louco
ou quase quieto de emoção.
O coração não aparece na foto
do documento da nossa identidade.
E porém...
O coração É a nossa identidade.


Maria Eu




domingo, fevereiro 15, 2015

O meu pai

(Jorge Pinheiro)




Cresci a adorar o meu pai. Homem bonito e tisnado pelo sol de quem se dizia quebrar corações em rapaz.Marcado por uma infância na qual não faltou comida na mesa mas que também não foi parca em trabalho, nunca foi de muitas palavras. 

Aos 9 anos já abandonara a escola com a 3ª classe, escolaridade obrigatória num país de analfabetos. Nunca gostara da carteira onde o sentavam frente aos cadernos nem da professora que marcava as pernas dos meninos com vergões de canas que eles mesmos lhe levavam, do canavial. Tantas e tantas vezes ficava pelo caminho a jogar futebol com os mais velhos ou a ajudar um e outro a cuidar dos animais no pasto. Esses atrasos valiam-lhe a fúria da mãe, mulher de "pêlo na venta", e muitos castigos.
Muito mais tarde, filhas crescidas, foi fazer o exame da 4ª, numa manhã envergonhada, em outra cidade, não fora alguém saber (eu soube-o pela minha mãe, já adulta, em muito segredo). Conheci-o sempre a trabalhar, numa jorna longa, sem nunca faltar um dia, mesmo doente. De uma rigidez que fazia questão de aplicar a ele mesmo para depois o fazer aos outros, os elogios aos seus eram guardados no peito e as críticas ferozes e públicas.Vi-o envelhecer a trabalhar até lhe dizerem que não dava mais para ficar e também o vi engolir as lágrimas por isso. Nunca teve jeito para as palavras. Escrevi-lhe as que proferiu na despedida aos que o tinham acompanhado nas horas longas de trabalho.
Olho-o agora, um homem de rosto enrugado e triste, encolhido no sofá, a falar do pouco tempo que lhe resta e a fazer as mesmas perguntas repetidamente. Só lhe brilham os olhos ao olhar das filhas, dos netos e bisnetos.
Ontem, segurava-me pela mão para que os meus passos se fizessem fortes enquanto me ensinava que o céu é azul. Hoje, pego-lhe na mão e lembro-lhe que o céu pode ser azul e não cinzento, como o pinta nos seus dias de memórias cada vez mais difusas.



sábado, fevereiro 14, 2015

Amor


(Marc Chagall)


- Vem ao jardim na primavera, disseste.
- Aqui estão todas as belezas, o vinho e a luz.
Que posso fazer com tudo isso sem ti?

- E, se estás aqui, para que preciso disso?


Jalāl ad-Dīn Muhammad Rūmī (1207 – 17 December 1273)




Só a tua presença me completa.

sexta-feira, fevereiro 13, 2015

Insónia

(Pedro Abreu)


Não sabia porquê, a insónia fazia-lhe demasiada companhia de há um tempo a esta parte. Olheiras, lágrimas involuntárias e cabeça latejante são largamente compensadas com horas extra de música e muitas páginas lidas. Os sentidos também ficam mais despertos, de madrugada. A pele sensível à temperatura que desce e a arrepiar-se naquele momento certo em que o violino solta as notas mais intensas; o olhar sem distracção outra que o objecto da sua escolha; o olfacto a sentir o cheiro a café que ainda rescende da cafeteira e a faz levantar-se para lhe sentir o gosto; os sons que ecoam no silêncio com mais acutilância...
É nos sons que descobre qual a hora certa do sono, quando os pássaros gorjeiam nos primeiros voos matinais. 
"Podia morrer agora" pensa "ao som dos pássaros".


quinta-feira, fevereiro 12, 2015

Amor, como hera


(Júlio Pomar)

"Então tu pensas que há muitos casais como nós por esse mundo? Os nossos mimos, a nossa intimidade, as nossas carícias são só nossas; no nosso amor não há cansaços, não há fastios, meu pequenito adorado! Como o meu desequilibrado e inconstante coração d’artista se prendeu a ti! Como um raminho de hera que criou raízes e que se agarra cada vez mais. Vim para os teus braços chicoteada pela vida e quando às vezes deito a cabeça no teu peito, passa nos meus olhos, como uma visão de horror, a minha solidão tamanha no meio de tanta gente! A minha imensa solidão de dantes que me pôs frio na alma. Eu era um pequenino inverno que tremia sempre; era como essa roseira que temos na varanda do Castelo que está quase sempre cheia de botões mas que nunca dá rosas! Na vida, agora há só tu e eu, mais ninguém. De mim não sei que mais te dizer: como bem mas durmo mal; falta-me todas as manhãs o primeiro olhar duns lindos olhos claros que são todo o meu bem."

Florbela Espanca, em Correspondência (1921)





A amante sabe do seu amado a claridade do olhar, o (a)braço onde repousa as alegrias e o cansaço, o particular modo de beijar. Se ausente, fica a falta na lembrança.

Em nome delas

Pegue-se numa mulher. Arranque-se-lhe a língua. Para ficar ainda mais perfeita, arranque-se-lhe a alma. Fique-se com o corpo, servido a gosto de quem o usa.

(Flora Borsi)


“as mulheres só são belas porque têm parecenças com os homens, como os homens são a imagem de deus. não é heresia, pensa bem, se se parecessem mais com cabras do que com homens nem natureza para nós teriam. Precisam de nos parecer sem alcançar igualdade, que para isso estamos cá nós. E depois, beleza assim até aumentada, o que lhes tirou deus em préstimo de espírito deu-lhes em curvas e cor, servem perfeitamente para nos multiplicar e muito agradar, mas isso da inteligência é como te disse, cuidado com o que sabem porque acham mais do que sabem.”


valter hugo mãe, in "o remorso de baltazar serapião"




quarta-feira, fevereiro 11, 2015

Como um trovão



 (Stanley Spencer)

"É como um trovão em pleno Inverno. Em breve será Verão!"

Palavras de uma professora de uma escola da Ucrânia para acalmar as crianças durante mais um ataque.


terça-feira, fevereiro 10, 2015

Partir

(Ângelo de Sousa)



Porquê ficar em terra quando partir tem o apelo do mar?


Anunciação

(Manuel Amado)

Veio o Anjo e disse: "Há um reduto ínfimo, no mais fundo de ti, onde podes sempre ser feliz." E ela acreditou, apesar do aço frio da espada na pele fina do pescoço.



segunda-feira, fevereiro 09, 2015

Murais

Desde sempre os murais me entraram pelos olhos. Menina, ainda, via os fantásticos desenhos revolucionários pós-Abril, muitos deles de uma extraordinária qualidade e que hoje, lamentavelmente, só persistem em algumas fotografias e documentários, para além de na memória de um punhado de nós. As revoluções foram incubadoras dessa arte que a muitos parece menor e a América Latina, com destaque para o México, é um exemplo de expressão maior com aqueles que ficaram conhecidos como “muralistas”.
Foi após o derrube da ditadura de Porfirio Diaz, nos anos setenta do séc. XIX, que os murais explodiram de cor e ocuparam um lugar de destaque em edifícios por todo o México. Apoiado pelo ministro da Educação, José Vasconcelos, que acreditava ser o mural um forte símbolo da herança pré-colonial, o muralismo fortaleceu-se a partir do desenvolvimento de técnicas que, inclusivamente, integraram o estudo das pinturas que cobriam paredes de locais como o Templo dos Jaguares no Chichen-Itza e de outros marcos pré- colombianos.

O mural constitui-se como a forma de arte mais acessível a todos. O povo não tem que ir ao museu para ver arte, ela vai até ele, sempre intencionalmente significativa, instigadora do questionamento, da inquietação.
Do México à Nicarágua ou à Argentina, os murais fazem parte da história da arte que ultrapassou fronteiras e cujos nomes estão representados nos grandes museus de todo o mundo.
De entre os maiores muralistas escolhi destacar:

Diego Rivera (o controverso marido de Frida Kahlo), mexicano.

David Alfaro Siqueiros, mexicano.

Ricardo Carpani, argentino.

Italo Grassi, argentino.

Rodrigo Peñalba, nicaraguense.

Matus Frederico Vega, nicaraguense.



sábado, fevereiro 07, 2015

Perto do centro, no olho do furacão

(Manuel Amado)


Perto do centro

Este dia, este  momento.
O tempo único e imóvel atravessando-nos aos dois
como a uma superfície incrédula.
Eu e tu, antes e depois: tu, a Mesma.
E, no entanto, pouco pode o amor alcançar
senão a minha mão na tua mão.
O meu desejo é maior do que eu,
e eu maior do que o meu desejo maior do que eu.
Também o tempo se move imovelmente no tempo,
a esperança na incerteza,
o desejo na convicção da eternidade.
O amor é só um estremecimento de azul. 
Perto do centro,
onde a vida e a morte (ambas desprezam
aqueles que amam) riem.

Manuel António Pina





Há um. Depois, há outro.
Há um mais um, igual a dois que, afinal, não é assim. 
No fim, assim é que é, um mais um, igual a um
rindo, perto do centro, no olho do furacão
onde nada temem, nem a vida, nem a morte.

quinta-feira, fevereiro 05, 2015

Pecado

(Ivana Vostrakova)



"Apesar da minha educação cristã, ou por causa dela, sempre me recusei a viver sujeita à ameaça do pecado. As grandes indústrias vêm tentando convencer-nos de que é possível tirar o veneno ao prazer e ficar apenas com o prazer: café sem cafeína, cerveja sem álcool, cigarro sem nicotina - amor platónico. Quanta estupidez. Quem bebe café procura a exaltação da cafeína. Quem pede uma cerveja numa tarde de sol quer refrescar o corpo, sim, mas também quer soltar o espírito. Se é para pecar quero o pecado inteiro. "


José Eduardo Agualusa, in "A Educação Sentimental dos Pássaros"




Percorria o caminho cinza como de costume, tentada pelo vermelho daquela outra via. Tinham-na avisado que aquela era a cor do pecado. Começou por vestir uma camisola vermelha. Logo, num dia de chuva, abriu provocadoramente um guarda-chuva da mesma cor. No trajecto de regresso, toda ela era cor de sangue. Palmilhara o caminho do pecado e... gostara!

Atracção




"O que obviamente não presta sempre me interessou muito. Gosto de um modo carinhoso do inacabado, do malfeito, daquilo que desajeitadamente tenta um pequeno voo e cai sem graça no chão."

Clarice Lispector








Deixava-se enternecer com aquele gesto fugaz de uma mão que, nunca tocando a sua por completo, ficava tão perto que lhe sentia o calor.

terça-feira, fevereiro 03, 2015

Espera


(Loui Jover)

Como esta
       
          coitado do mário cesariny
               coitado dele e também do álvaro de
               campos e também de mim que
               sei da solidão que me farto

como esta sau
dade vita
lícia preenche
a tua ausência

como se prende
ao teu lugar
com fundas, férteis,
tuas raízes

morada que
tu habitas
com ela te
reconcilias

tem o teu nome
a tua idade
senta-se à mesa
no teu lugar

Manuel António Pina





No centro da minha espera, jaz a forma exacta do teu corpo, pronta a receber-te quando vieres.

segunda-feira, fevereiro 02, 2015

Escadas

(db Waterman)


Subia as escadas de pedra escura e levemente esverdeada pela humidade em cadência hesitante, cabeça baixa e ombros descaídos. Era dia de feijoada à Transmontana, pelos vistos, daquela com couve e muito chouriço. Já sentia o cheiro ao quinto degrau (havia ainda mais quinze para superar) e não conseguiu parar a saliva que lhe crescia na boca na antecipação do almoço. 
Crispou as mãos com raiva de si mesmo por desejar comer nesse momento. As unhas cravaram-se-lhe na polpa macia e clara deixando marcas fundas e vermelhas. 
O que aconteceu às tuas mãos? iriam perguntar-lhe. Apressou uma desculpa mas não lhe parecia que acreditassem ter-se defendido de punhos cerrados de um ataque do cão da Dona Joaquina, a vizinha da casa verde água. Ora! Fossem à merda mais as suas perguntas. Beijaria a cunhada e as crianças, apertaria a mão ao irmão e sentar-se-ia à mesa para comer a feijoada. Afinal, a casa era também sua, porque ali crescera, e o cadáver que jazia na sala principal, rodeado de velas e de beatas a rezar o terço, era o do seu pai.

domingo, fevereiro 01, 2015

Houvesse um colo


(Lars Theuerkauff)

Se eu pudesse dizer-te: - Senta aqui
nos meus joelhos, deixa-me alisar-te,
ó amável bichinho, o pêlo fino;
depois, a contra-pêlo, provocar-te!
Se eu pudesse juntar no mesmo fio
(infinito colar?) cada arrepio
que aos viajeiros comprazidos dedos
fizesse descobrir novos enredos!
Se eu pudesse fechar-te nesta mão,
tecedeira fiel de tantas linhas
de tanto enredo imaginário, vão,
e incitar alguém: - Vê se adivinhas...
     Então um fértil jogo amor seria.
     Não este descerrar a mão vazia!

Alexandre O'Neill