Era sempre à sexta feira. Joana saía de
casa ainda a aldeia toda dormia, vestida com roupas coloridas e cabelo
primorosamente penteado em caracóis que lhe emolduravam o rosto precocemente
envelhecido.
Foi num desses dias que a vizinha do
lado, acometida de uma falta de ar insuportável, assomou à janela e a viu,
assim arranjada, em passo apressado. Estranhou-lhe o preparo e, sem pudor, logo
segredava com as mulheres que lhe faziam companhia no café da manhã o colorido
do figurino de Joana e a hora deveras matinal a que saíra. De imediato se
levantaram as mais variadas hipóteses. Teria ela um namorado secreto? Iria a
algum evento na vila mais próxima?
Escusado será dizer que, a partir daí,
os olhares curiosos começaram a ocupar as janelas bem cedo, por detrás das
cortinas brancas, num concurso de espionagem, para ver quem mais rapidamente
descobria o destino de Joana.
Era sempre à sexta feira. Joana arranjava-se
como nos tempos de adolescente. Sentia-se um pouco ridícula, por isso saía bem
cedo. Por outro lado, assomava-lhe um sorriso ao rosto enrugado pensando na
alegria da mãe quando a visse chegar ao lar. Sabia que era assim que ela a recordava
e reconhecia.
Era um tempo de flores. Não daquelas que
enchiam de cor os canteiros do jardim da casa da sua mãe, nem tampouco das que
rompiam nos lugares mais imprevistos, como os muros dos caminhos da aldeia onde
crescera. Essas eram sempre perfumadas, algumas, até, intoxicantes, de tão
intenso o perfume.
Das que falo, as deste tempo, veem em
ramos. Lindas, perfeitas, nem um pé mais torcido, ou uma pétala com o traço
característico de um caminho feito pela pequena lagarta verde.
Cumprem o seu propósito, seja de amor ou
dor, sempre iguais, sem que a ocasião lhes desmanche a perfeição quase como se
fossem artificiais.
Fora
num dia gélido, ao rasgar de um raio e ribombar de um trovão que Etelvina viera
ao mundo. A mãe, mulher da vida nocturna, esvaíra-se em sangue na esquina da
rua onde lhe rebentaram as águas e foi um engraxador de sapatos ambulante que
lhe cortou o cordão umbilical com a faca de raspar as solas dos sapatos.
Levou-a com ele, embrulhada num trapo sujo de graxa. Não tivera mulher nem
filhos e agora decidira criar aquele nico de gente que berrava por quantas
tinha.
A
Sra. Bina, vizinha de sempre, prometeu ajudá-lo. Afinal, também nunca tivera
nos braços uma cria sua.
Etelvina
cresceu à míngua e tinha no olhar, azul escuro, um mar revolto. Diziam os
poucos que a provocaram que tinha uma faca nos dentes.
Quando
ficou sozinha, quedava-se no casebre do sapateiro durante o dia e saía de
noite para rondar os caixotes de lixo dos restaurantes à beira rio. Sempre
arranjava algum resto de boa comida para matar a fome.
Um
dia, deu com Simão, apanhador de ameijoa no Tejo, homem de poucas falas e faca
nos dentes e juntaram as suas solidões, facas largadas no chão de uma
viela esconsa.
Houve um tempo de silêncio. Não se sabe
como se perderam as palavras, mas fora de repente. A rapariga apaixonada não
foi capaz de dizer do seu amor, o homem da mercearia deixou de enunciar as
maravilhosas especiarias chegadas de Marrocos, nas escolas não mais se ouviram
algarviadas de meninos.
Foram os pássaros que, estranhando a
mudez, iniciaram a época dos gorjeios permanentes. Dia e noite, excediam-se em
melodias extraordinárias, como que a lembrar da beleza da voz.
Primeiro, apenas as criaturas aladas se
fizeram ouvir (diz-se que eram anjos disfarçados de pássaros), mas ao longo dos
dias e noites, pouco a pouco, começaram as palavras ditas em surdina pelos amantes,
logo as crianças se apressaram a desenrolar pequenas frases em reposta aos
incentivos dos pais e, não tardou nada a ser um novo tempo, o tempo das
palavras ditas.