Viam-se muito de quando em vez. Sabiam-se amigas e isso bastava para que se alegrassem a cada encontro. Ambas carregavam um tempo de vida que justificava o disfarce dos cabelos brancos com tons de cobre e o uso de saltos menos altos.
Abraçaram-se estreitamente e Laura percebeu que Joana tinha um brilho que lhe não via há anos. Disse-lho e recebeu um sorriso rasgado. Joana, a mulher alegre, de convicções fortes, tinha encontrado, sem aviso prévio, o amor.
Falou-lhe do espanto, do coração disparado, das mãos trémulas. Contou-lhe que achara um disparate, aquela coisa de se apaixonar a caminhar para os sessenta, mas que era tudo igual ao que sentira quando jovem. O sangue que se não aquietava, o pensamento sempre preso aos momentos de encontro, o sorriso tonto quando se perdia nas lembranças daquelas mãos apertando as suas. Confessou, ainda, que não seria um daqueles amores "para sempre", mas que era tão bom, mas tão bom, que não importava se durasse meses ou anos. Quando se separaram, Laura seguiu Joana com o olhar até que desaparecesse na porta do corredor onde se encontrava. Como eram leves, os seus passos!
Nem sabia porque entrara ali há uns
bons vinte anos. Era Agosto, o calor insuportável da cidade, cada vez
mais de betão, instalara-se de armas e bagagens e quase não saía de
casa, a não ser para uma incursão rápida ao supermercado ou à
frutaria Leal. Foi junto à frutaria, Leal do nome herdado do Sr.
João, homem de rubicunda barriga e bigode farfalhudo, que reparou
pela primeira vez no modesto letreiro a preto e branco. Lia-se, ao
lado do desenho de uma tesoura de considerável dimensão:
Cabeleireiro Mimar – Beleza e Elegância.
O cabelo estava mesmo precisado de
cuidados, farto de sol e água salgada. Olha, nem é tarde nem é
cedo, vou-me às mãos de Mimar!
Fui recebida por um alegre bom dia de
uma senhora pequenina, olhar vivíssimo e sorriso rasgado.
A Sr.ª deseja alguma coisa?
Bom dia! Lavar e secar, pode ser?
Claro que sim! Faça o favor de entrar!
Sente-se!
E foi nas mãos seguras e suaves da
Dona Clotilde que me entreguei sem medos. Da amena mas curta
conversa, fiquei ciente da pouca afluência àquele espaço.
É humilde, sabe? E como sou um
bocadinho velhota, acho que as senhoras e as meninas não se sentem
tentadas a entrar...
Não me pareceu assim. Um pouco
antiquado, de facto, o salão, mas espaçoso e com muita luz a entrar pela
ampla janela. Sofás azuis (pronto, não muito bonitos) e armários
brancos onde pontu(av)am uns malmequeres de onde em onde, muito anos
sessenta. Mas as mãos! Ah, as mãos da Dona Clotilde eram de fada!
Lavou-lhe o cabelo com três porções de champô, amaciador a deixar
um perfume maravilhoso, e secou-lho com escova de pêlo de
javali nuns escassos 20 minutos. Melhor do que isso, ainda, sem
conversas sobre o jet set das revistas cor de rosa, ou acerca das clientes
mais ou menos satisfeitas. Só o amplo sorriso e o secador a aflorar
o cabelo que ia enrolando na escova. Ao perguntar o preço, nem dava
para acreditar!
Pois que é assim, minha Sr.ª! Nem
pense em dar mais! É o que eu levo. Pode ser que fique minha
cliente!
Já passaram muitos anos. A Dona Clotilde já dobrou os setenta há sete anos e continua ali, firme, a
enrolar cabelos numa escova de pêlo de javali.
Então, ainda consegue estar tanto tempo
de pé? Tem que pensar em descansar!
Eu? Nem pensar! Isso é para as
velhotas do lar onde vou fazer voluntariado!
Eram ásperas, as palavras. Sabia que feriam como facas, mas nada mais importava que a expressão da nuvem negra que lhe ensombrava o peito. Adiara-as por tanto tempo que chegara a duvidar ser capaz de, alguma vez, voltar a falar. Era-o!
Saiu pela porta da cozinha, depois de encher uma saca de pano com maçãs e pão de milho. Na mão, umas poucas moedas.
Encontraram-se junto ao poço do campo da quinta abandonada como costumavam fazer sempre que podiam.
Deram-se as mãos e ele disse: Sempre fugimos?
Fugimos!- respondeu.
Caminharam até à casa grande e cinzenta onde ninguém vivia há longos anos. Um restolhar de folhas secas atingiu-os. Entreolharam-se, assustados, e correram, voltando para trás.