terça-feira, dezembro 17, 2019

A arte da perda

(Andrew Jones)


One Art



The art of losing isn’t hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn’t hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother’s watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn’t hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn’t a disaster.

—Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan’t have lied. It’s evident
the art of losing’s not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.

Elizabeth Bishop
Uma arte

A arte da perda não é difícil de dominar:
a perda parece ser inerente a tantas coisas,
que perdê-las nem chega a ser infortúnio.

Perde alguma coisa a cada dia. Aceita a perturbação
das chaves  extraviadas, da hora desperdiçada.
A arte da perda não é difícil de dominar.

Começa, então, a praticar mais e mais perdas
lugares, e nomes, e para onde tencionavas
viajar. Nenhuma delas será trágica.

Perdi o relógio da minha mãe. E, imagina!
das três casas que tive, perdi a penúltima
A arte da perda não é difícil de dominar.

Perdi duas cidades, lindas!
Alguns dos meus reinos, dois rios, um continente.
Sinto-lhes a falta, mas não foi fatal.

- Mesmo perder-te (a voz brejeira, um trejeito
que eu amo) Não devia ter mentido. É evidente
que a arte da perda não é difícil de dominar
ainda que pareça (Anota!) uma fatalidade.

Elizabeth Bishop, traduzida por Maria Eu


(Ólafur Arnalds - momentary (choir version)

quinta-feira, dezembro 05, 2019

Reencontro


Olharam-se de relance e prosseguiram o seu caminho em passo menos célere. Estacaram, ambas. 
Quando retrocederam, os olhos brilhavam no reconhecimento das adolescentes de outrora.
Clara?
Maria?
Um abraço imenso com mais de quarenta anos de premeio quase as deixava sem fôlego. 
Depois. Depois, foi uma catadupa de palavras, com risos e lágrimas à mistura, que não era para menos, caramba. Tantos anos! Tanta vida! 
Em comum, tinham o frio da camarata, os joelhos azulados dos bancos corridos da capela, os livros de banda desenhada e as fotonovelas dissimuladas pelos livros escolares na sala de estudo, os ralhetes das freiras pelas conversas nas aulas de religião e moral (valeram-lhes um Suf.- a destoar do Muito Bom de todas as outras) e o castigo quando as apanharam em flagrante a espreitarem pela janela, em poses de crescidas, para os rapazes do externato. Ah! Mas também houvera os fins de semana na casa uma da outra, metidas na mesma cama, na treta, até de madrugada; os segredos partilhados das paixões assolapadas, embora platónicas; os cigarros roubados em casa e fumados no meio dos arbustos, a que se seguia uma boa esfregadela de dentes com casca de laranja, não fosse o cheiro denunciá-las; as roupas trocadas; os batôns e os lápis dos olhos comprados em comum e, acima de tudo, o calor de uma amizade imensa, cortada abruptamente pela morte do pai de Clara, que a levara a abandonar o colégio e a partir para a Austrália com a mãe.



sábado, novembro 30, 2019

Frio

(Jenny Saville)

Quando o frio chegou, ainda era cedo. 
Tinha o corpo a descoberto e a alma nua. 


(Etta James - Misty Blue)

quarta-feira, novembro 27, 2019

Dos voos (último)

(imagem daqui)

As mãos de ambos repousavam em cima da mesa de vidro do salão de chá. Tocavam-se, ao de leve. Havia nelas, porém, uma impressão de inquietude que denotava traços de muitos voos conjuntos.

segunda-feira, novembro 25, 2019

Dos voos IV







































(Roberto Camasmie - Metamorfose)

Admiravam-se de vê-la sempre com um brilho no olhar, mau grado todas as adversidades. Mal sabiam que, por dentro, tudo o que existia era uma constante metamorfose. 

Ela era um voo permanente de borboletas. 



sábado, novembro 23, 2019

Dos voos II

(fotografia daqui)

Há um enorme corrupio nos centenários plátanos. Pesam-lhes os ramos do peso dos pequenos e esfuziantes habitantes.
Vem a menina e bate palmas! É vê-los a voar em debandada.

quinta-feira, novembro 21, 2019

terça-feira, novembro 19, 2019

Rede(s)

(imagem daqui)

Afasta-se do bando
crendo que a dor será menos
dor na gaiola dos (a)braços.
Não queria nada devagar.
Nem voos, nem céu, nem mar.
Mergulhou em voo picado,
ainda que sabendo da malha
apertada da rede.

Era doce. Ficou.


(Kaz Hawkins - Feeling Good)

terça-feira, outubro 29, 2019

Era uma vez uma flor



(Mapplethorpe)


Para a Maria Eu

Porque los pájaros nacidos en jaula creen que volar es una enfermedad, de más en más hay pájaros rogando porque los  metan en una jaula.

Alejandro Jodorowsky


"voam em bando
os pássaros negros do teu cabelo,
mas não te digo nada para não te acordar. 
fico só olhando, 
adivinhando o rumo no bater das asas,
o crocito em coro sobrevoando o teu ventre, 
alto-ventre, 
baixo-ventre,
espero até os ver pousar.
imobilizo-me depois,
fico quieto,
na intimidade do teu quarto
respiro mais devagar.
já não sinto o dia, nem a dor,
nem o tempo, nem a voz,
apenas um sopro suave
e faço os pássaros voar"


Há palavras que nos beijam.

(The Cinematic Orchestra - Arrival of the birds)

domingo, outubro 27, 2019

Actuação final


(Amy Judd)


O palco era um velho amigo. Entre ela e ele não havia segredos. Crescera a praticar o equilíbrio corporal, a projecção da voz, a encarnação das personagens. Horas a fio, fora de tudo um pouco: mulher e amante; pobre e rica; doce e amarga; dócil e rebelde...
Cansada, era cansaço o que sentia, desse jogo de sol e sombras, de nunca ser ela, sendo sempre outras.

Tinha feito a actuação final. Não haveria mais diálogos, monólogos, público, palmas... Descalçou os sapatos vermelhos ainda sob a luz intensa do holofote. Pés nus, coração descompassado, subiu as escadas como uma sonâmbula. De lá de cima conseguia ver a mancha vermelha iluminada. Fechou os olhos e voou.



(Zbigniew Preisner, Lisa Gerrard, Dominik Wania - Melodies of my youth)

segunda-feira, outubro 21, 2019

Perdão

(Fernando Amorsolo)


Augusta subia a ladeira íngreme a custo, a mão direita a afagar os rins por cima da blusa de seda bege.
Entre dentes, desfiava um rol de pragas.
“Rais partam as malditas pedras mais quem se lembrou de mandar calcetar tão mal o diabo do caminho! Havia de se estrepar todinho cada vez que aqui passasse!”
Chegada à eira da casa grande, parou um pouco para regularizar a respiração e limpar o rosto suado com um lenço da mão. O lenço, de cambraia branca bordada, não merecia tal destino, mas do bolso daquela saia plissada preta, que habitualmente usava para ir à missa, só se esperava saíssem coisas finas.
Bateu palmas, enquanto gritava: “Oh, da casa! Oh, da casa!”
Bem que sabia haver uma campainha, toda moderna, na porta verde, ao cimo das escadas. Mas se esperavam que subisse mais uma vintena de degraus depois da ladeira, deviam estar doidos!
Ouviu uma voz respondendo, lá de dentro, “Já vai! Já vai, senhora!”
Uma cabeça de homem, ornada de farta e desordenada cabeleira branca, assomou à porta, apenas entreaberta.
“Augusta! És mesmo tu?” Havia espanto nas palavras.
“Sou eu, pois, seu velho covarde! Vim dizer-te que podes morrer em paz que eu, Augusta da Conceição, perdoo-te teres-me abandonado no altar, naquele dia 15 de Agosto de 1960!”
E foi assim, sem mais, que Augusta deu o recado e, de imediato, voltou a descer por onde viera, repetindo baixinho “Pronto! Pronto! Agora podemos morrer os dois descansados!”

A aldeia acordou, no dia seguinte, com o toque  a finados dos sinos. Augusta da Conceição e António Carriço tinham morrido durante a noite. Os sinos que não tinham repicado pelo seu casamento, faziam-no agora, que a morte os juntara.



(Hélène Grimaud - Mozart: Piano Concerto No. 23: II. Adagio)

segunda-feira, outubro 07, 2019

Espelho meu


(Zélia Salgado)


Há em mim tanto de ti que me olho ao espelho e te vejo. Há um mundo de palavras escritas em qualquer lugar, desde um semáforo à minha cama. Há um cheiro intenso ao teu perfume que, de quando em vez, parece perfumar os meus pulsos. Há uma queimadura na pele, dos teus lábios em beijos ardentes. Há um brilho nos olhos, do reflexo do brilho dos teus. Há a vontade  imensa de encostar a cabeça no teu peito e, simplesmente, não dizer nada, só sentir-te respirar.


(Etta James & B. B. King - There's Something on Your Mind)

quinta-feira, setembro 26, 2019

Namorado, precisa-se (final)

(Anne Mondro)


Carolina começou a tricotar o namorado na segunda-feira. Queria fazer um boneco da sua altura, aconchegante, fiel e quieto pois já não vai para nova e não quer ninguém a encher-lhe a cabeça.
Pronto! Cá está ele! Lindo! Olhos esverdeados, sorriso abrindo-se em covinhas na face, cabelo castanho escuro! pensou ao vê-lo pronto. Nessa noite, deitou-se abraçada a ele. És tão macio! murmurou enquanto se aconchegava nas pregas do crochet e adormecia.
Carolina tinha um namorado. Lindo, fiel e quieto. E se não fosse tão lindo mas fosse menos quieto? pensou. E se fosse um namorado que me abraçasse? E se tricotasse vários namorados e os guardasse na arca do quarto e os fosse usando consoante o tempo e as necessidades?
Assim se entreteve, daí por diante, a tricotar enredos de inúmeras peças de amores ardentes à mistura com sexo escaldante e as horas passaram mais depressa fazendo da solidão uma recordação longínqua.



(Carminho e Chico Buarque - Falando de Amor)

terça-feira, setembro 24, 2019

Namorado, precisa-se (I)

(HAROLD C. HARVEY)


Já não ia para nova, a Carolina. Pela manhã, quando se olhava ao espelho na pressa da saída, o rosto que a olhava de volta dizia-lhe que o tempo fugia em pequenas rugas e fios brancos no cabelo castanho.
Gostava de tricotar, a Carolina. Tecia fios com agulhas em teias coloridas, num ponto delicado mas sempre preciso e firme. Na arca do quarto acumulavam-se toalhas, camisolas, xailes e até vestidos, todos feitos em horas esquecidas de si e da sua solidão.
Um dia destes, pensou, certo Domingo, um dia destes tricoto um namorado.


(Samba de Utopia - Jonathan Silva)

sábado, setembro 21, 2019

Memórias

(Tina Maria Elena)


Rescendem a mar, a algas, as memórias. Ao tempo em que o Verão entrava pelos nossos olhos adentro  na areia de uma praia cheia de luz. Eram as horas da languidez absurda, da ternura e da cegueira absoluta da paixão. Era o tempo dos dias felizes.


(Rodrigo Leão & Lula Pena - Pasión)

terça-feira, setembro 10, 2019

Sedução em azul



no dominante vermelho-vivo alguém pintou um traço branco
proibido, dizem

permitido, desdizem
os pássaros azuis, seduzindo-se, sem cerceamentos 



segunda-feira, agosto 26, 2019

Ecos



Assomou à janela de onde tantas vezes os ouvira chamá-la: Maria! Maria!
Havia ecos de conversas, risos, cantigas, choros... Num dia era menina, brincava nos campos, rebelde, fazendo das árvores casas, navios, aviões, no outro, adolescente sonhadora, livro aberto em horas longas, o coração em sobressalto, ao ritmo das palavras que a faziam adormecer de madrugada, na ânsia de lhes descobrir o fim. Agora, uma mulher a quem marcam finas rugas junto dos olhos, na comisura dos lábios, ainda e sempre de coração aberto às palavras, as dos livros e as que ecoam na casa.



(Madredeus - O Paraíso)

sábado, agosto 17, 2019

Pensamentos de Verão , último

(Jack Vettriano)


Se amor de Verão matasse, quantos morreriam sem sentirem a falta de Setembro?


(Soap&Skin - Me And The Devil)

quarta-feira, agosto 14, 2019

Pensamentos de Verão IX

(imagem daqui)

A mulher de calções vermelhos e camisola preta que olha o mar melancolicamente sentirá o olhar,  discretamente disfarçado pelo jornal, do homem  de calção verde alface?



(Down by the Seaside - Led Zeppelin)

segunda-feira, agosto 12, 2019

Pensamentos de Verão VIII

(imagem daqui)

A quantidade de areia que os cinco filhos dos Ferreira de Castro levam todos os dias nas sapatilhas chegará para transformar-lhes o pátio de casa numa praia privativa?


(Itzhak Perlman - Joseph-Hector Fiocco - Allegro)

sábado, agosto 10, 2019

Pensamentos de Verão VII

(imagem daqui)

O namoro do muito jovem casal, que começou em Julho, terminará com o final das férias ou durará até que o bronzeado passe?


   
(Onde Estara O Meu Amor - Maria Bethania e Chico Cesar)

quinta-feira, agosto 08, 2019

Pensamentos de Verão VI

(imagem retirada daqui)


Terminada a época estival, a adolescente loira e esguia continuará esguia após aceitar todas as bolas de berlim que o rapaz imberbe da barraca ao lado lhe oferece?



(Gustavo Dudamel ~ Danzón No. 2 (Marquez) ~ Orquesta Sinfónica Simón Bolívar)

terça-feira, agosto 06, 2019

Pensamentos de Verão V

(imagem retirada daqui)

Quando o bebé gatinhador chegar à borda do mar,  será a mãe capaz de levantar-se do torpor bronzeado com a mesma graça com que se deitou ao sol, quando chegou?




(Garota de Ipanema - Tom Jobim)

sábado, agosto 03, 2019

Pensamentos de Verão IV

(Trevisan Carlo - Saatchiart)


O chapéu da rapariga de vestido branco voou. Irá encontrar-se com o do rapaz de ar gótico, de negro vestido?



(OPA TSUPA : Mamma mia -valse)

quarta-feira, julho 31, 2019

Pensamentos de Verão III


Julgo que, às vezes, são as lancheiras que comem o que guardam, tal é a velocidade a que tudo desaparece.



(Cymande - Dove)

segunda-feira, julho 29, 2019

sábado, julho 27, 2019

Pensamentos de Verão I

(Salvador Dali)

Quanto tempo se vive sem ter o mar nos olhos?


(Sodade - Cesária Évora e Bonga)

segunda-feira, julho 22, 2019

Joana

(foto de Pinterest, guardada por Carmelo C.S.V.)

Viam-se muito de quando em vez. Sabiam-se amigas e isso bastava para que se alegrassem a cada encontro. Ambas carregavam um tempo de vida que justificava o disfarce dos cabelos brancos com tons de cobre e o uso de saltos menos altos.
Abraçaram-se estreitamente e Laura percebeu que Joana tinha um brilho que lhe não via há anos. Disse-lho e recebeu um sorriso rasgado. Joana, a mulher alegre, de convicções fortes, tinha encontrado, sem aviso prévio, o amor. 
Falou-lhe do espanto, do coração disparado, das mãos trémulas. Contou-lhe que achara um disparate, aquela coisa de se apaixonar a caminhar para os sessenta, mas que era tudo igual ao que sentira quando jovem. O sangue que se não aquietava, o pensamento sempre preso aos momentos de encontro, o sorriso tonto quando se perdia nas lembranças daquelas mãos apertando as suas. Confessou, ainda, que não seria um daqueles amores "para sempre", mas que era tão bom, mas tão bom, que não importava se durasse meses ou anos.
Quando se separaram, Laura seguiu Joana com o olhar até que desaparecesse na porta do corredor onde se encontrava. Como eram leves, os seus passos!


(Chavela Vargas - Adoro)

sábado, julho 13, 2019

Cabeleireiro Mimar – Beleza e Elegância


(Betty Pieper)


Nem sabia porque entrara ali há uns bons vinte anos. Era Agosto, o calor insuportável da cidade, cada vez mais de betão, instalara-se de armas e bagagens e quase não saía de casa, a não ser para uma incursão rápida ao supermercado ou à frutaria Leal. Foi junto à frutaria, Leal do nome herdado do Sr. João, homem de rubicunda barriga e bigode farfalhudo, que reparou pela primeira vez no modesto letreiro a preto e branco. Lia-se, ao lado do desenho de uma tesoura de considerável dimensão: Cabeleireiro Mimar – Beleza e Elegância.
O cabelo estava mesmo precisado de cuidados, farto de sol e água salgada. Olha, nem é tarde nem é cedo, vou-me às mãos de Mimar!
Fui recebida por um alegre bom dia de uma senhora pequenina, olhar vivíssimo e sorriso rasgado.
A Sr.ª deseja alguma coisa?
Bom dia! Lavar e secar, pode ser?
Claro que sim! Faça o favor de entrar! Sente-se!
E foi nas mãos seguras e suaves da Dona Clotilde que me entreguei sem medos. Da amena mas curta conversa, fiquei ciente da pouca afluência àquele espaço.
É humilde, sabe? E como sou um bocadinho velhota, acho que as senhoras e as meninas não se sentem tentadas a entrar...
Não me pareceu assim. Um pouco antiquado, de facto, o salão, mas espaçoso e com muita luz a entrar pela ampla janela. Sofás azuis (pronto, não muito bonitos) e armários brancos onde pontu(av)am uns malmequeres de onde em onde, muito anos sessenta. Mas as mãos! Ah, as mãos da Dona Clotilde eram de fada! Lavou-lhe o cabelo com três porções de champô, amaciador a deixar um perfume maravilhoso, e secou-lho com escova de pêlo de javali nuns escassos 20 minutos. Melhor do que isso, ainda, sem conversas sobre o jet set das revistas cor de rosa, ou acerca das clientes mais ou menos satisfeitas. Só o amplo sorriso e o secador a aflorar o cabelo que ia enrolando na escova. Ao perguntar o preço, nem dava para acreditar!
Pois que é assim, minha Sr.ª! Nem pense em dar mais! É o que eu levo. Pode ser que fique minha cliente!
Já passaram muitos anos. A Dona Clotilde já dobrou os setenta há sete anos e continua ali, firme, a enrolar cabelos numa escova de pêlo de javali.
Então, ainda consegue estar tanto tempo de pé? Tem que pensar em descansar!
Eu? Nem pensar! Isso é para as velhotas do lar onde vou fazer voluntariado!
E ri-se à gargalhada, comigo a acompanhá-la.

* inspirada nos posts da Mãe Preocupada e do Pipoco Mais Salgado



terça-feira, julho 09, 2019

Grito

(Rodrigo Guimarães)

Eram ásperas, as palavras. Sabia que feriam como facas, mas nada mais importava que a expressão da nuvem negra que lhe ensombrava o peito. Adiara-as por tanto tempo que chegara a duvidar ser capaz de, alguma vez, voltar a falar. Era-o! 


(Big Will & The Bluesmen - Hard Times)

quarta-feira, julho 03, 2019

Fuga adiada

(David Bromley)

Saiu pela porta da cozinha, depois de encher uma saca de pano com maçãs e pão de milho. Na mão, umas poucas moedas.
Encontraram-se junto ao poço do campo da quinta abandonada como costumavam fazer sempre que podiam.
Deram-se as mãos e ele disse: Sempre fugimos?
Fugimos!- respondeu.
Caminharam até à casa grande e cinzenta onde ninguém vivia há longos anos. Um restolhar de folhas secas atingiu-os. Entreolharam-se, assustados, e correram, voltando para trás.

Tinham sete anos. Podiam fugir mais tarde.



(Fly me to the moon - Diana Panton)

domingo, junho 30, 2019

Costura



A dor instalara-se há tempos. Insidiosa, como se fora composta de inúmeras agulhas finas a espetarem-se-lhe na carne. Curiosamente, onde mais a sentia era no coração. 
Começou a costurar-se, ponto a ponto, mas lá, onde a dor era maior, não havia pesponto que chegasse.


segunda-feira, junho 03, 2019

Regresso


(Paul Klee)

A igreja afigurava-se-lhe bem mais pequena do que nas suas lembranças. Havia um cheiro doce e intenso a flores murchas embora as do altar da Nossa Senhora de Fátima se mostrassem exuberantes de frescura, talvez porque fosse Maio.
Pesava-lhe a memória da sua infância, menina de vestido rodado e laçarotes no cabelo loiro em caracóis, encostada à mãe nas longas missas precedidas de terço. Naquele tempo, as senhoras mais abastadas tinham uma cadeira mais confortável, comprada por elas, e era a menina que se sentava nela, só dando lugar à mãe aquando do acto de ajoelhar.
Espantou-se ao verificar que ainda havia divisão entre homens e mulheres. Tal como no passado, os homens ocupavam os lugares próximos do altar-mor, num nível superior, separado por um degrau, enquanto as mulheres, as crianças e alguns, poucos, homens mais jovens ficavam no nível inferior.
Maria Antónia sentara-se no primeiro banco do nível inferior, como lhe competia,  imersa na dor da perda recente. O silêncio da espera pelo padre deixava ouvir a queda de uma ou outra rosa acastanhada pelo apodrecimento e do voo de uma mosca varejeira que entrara pelas portas abertas de par em par.
Estremecia a cada cara reconhecida. A Zefa do Marinho, com quem brincara às casinhas no recanto da despensa; o Sr. Adelino, que lhe pegara tantas vezes ao colo para melhor chegar às cerejas rubras do quintal; a Zita, a quem tinha ouvido falar pela primeira vez de beijos na boca, ...
Não se conteve e chorou. Desabaram todas as lágrimas que tinha sufocado há dias e sentiu que, de certa forma, regressara a casa.


terça-feira, maio 21, 2019

Lembras-te?

(Pablo Picasso)

Lembras-te, mãe, daquela vez em que estranhaste o silêncio da traquinas de três anos e a foste encontrar sentada no chão da cozinha, portas do armário escancaradas, a tirar os ovos que as galinhas tinham posto nos últimos quinze dias e a parti-los, um a um, numa alegria pintada de gema de ovo?
E de como não pudeste ralhar-lhe, quando te olhou com ar contrito e disse, fazendo beicinho: a menina é má!

Lembras-te, mãe, quando costuravas calções e bibes cheios de bolsos para caberem neles pedrinhas, caricas, flores, carrochos e todo um mundo de pequenas coisas com que enchia as fantasias de menina de sete anos?

Lembras-te, mãe, das noites de tosse funda nas quais me adoçavas o peito com xarope de cenoura e a alma com as tuas mãos ternas?

Lembras-te, mãe, quando, aos dezassete, quis ir ao baile de finalistas e o pai não deixou? Fizeste uma coisa subversiva, mãe! Assinaste tu a autorização e, não contente com isso, compraste-me uma roupa nova para eu ir dançar.

Lembras-te, mãe, quando te contei do primeiro namorado e tu só me disseste para ser feliz?

Lembrar-me-ei por ti, mãe...


(Dhafer Youssef - Soupir Eternel)


segunda-feira, maio 13, 2019

Caminho(s)



(Robert Mapplethorpe: Flowers - Artsy)

Havia tempos que Maria Inês começara a afastar-se. Não encontrava explicação para essa ânsia de se libertar da presença do outro. Era como se apenas se aquietasse no exílio. 
Ia-se perdendo num caminho longo, surda a palavras que não as que guardava no pensamento.
José olhava-a em desassossego, sem que soubesse como alcançá-la, até que iniciou um caminho longo para se encontrar com ela na sua solidão.



(Asaf Avidan -Small Change Girl)