terça-feira, junho 28, 2016

Joana

Foi numa das suas rápidas incursões à vila para se abastecer de café e sardinha para assar que encontrou Joana.
Havia pelo menos cinco anos que se não viam. Na infância, ambas corriam descalças, sandálias esquecidas ao pé de um qualquer muro, nos campos que ora as escondiam, de grandes as canas enfeitadas de espigas de milho, ora as revelavam ao longe, no meio das folhas rasteiras dos batatais.
Às vezes, atreviam-se a atravessar a estrada para chapinharem na água tépida que lambia a margem do rio, onde os rapazes, sempre mais intrépidos, mergulhavam.
A vida separara-a de Joana aos quinze anos. Partira para a cidade grande, estudara, por lá ficara a trabalhar, enquanto ela se deixara ficar, correndo nos campos de mãos dadas com o José, casando com o António, tendo dois filhos, mulher do lar.
Tão bonita, a Joana. Viram-se ao longe e voaram a apertar-se num abraço.
Foi ao olhá-la no fundo dos olhos que a soube infeliz.
Muito conversaram. Na despedida, perguntou-lhe "Como estás?" e ela, quase em segredo, sussurrou-lhe ao ouvido "Tenho saudades do José!"


quarta-feira, junho 22, 2016

O amor intermitente

(Pablo Picasso)


Acordaram um amor intermitente. Amordaçavam-no, deixavam-no à míngua de alimento num qualquer lugar frio e escuro, para o libertarem de quando em vez, furioso e voraz, quase os matando de tanta intensidade.


segunda-feira, junho 20, 2016

Confissão de uma paciente em estado crítico

(Paula Rego)

- De quando em vez, dói-me a alma, doutor. 
- E o corpo, Ana? O corpo é que eu tenho que tratar!
- O corpo? O corpo está doente porque me dói a alma.



quarta-feira, junho 15, 2016

Dos amantes felizes

(Robert Mapplethorpe)

Hoje, os amantes vivem a cupidez da luz. Há colibris estupidamente coloridos a beber os sucos doces e quentes dos corpos, receptáculos do mel translúcido que escorre do amor. Desabaram as paredes e a cama é um prado onde pontilham papoilas rubras, tão rubras como os lábios de ambos, macerados de tanto se beijarem. 


quinta-feira, junho 09, 2016

La razon se pierde razonando



Clara misturava-se no bulício do mercado, enleada na doçura das palavras, no castelhano arrastado, no colorido das frutas, das flores, no eco das milongas tocadas em gira-discos de plástico. Havia naquele povo todo um orgulho no olhar que negava as ruas esburacadas, a praia não vigiada onde os meninos saltavam do cais para o mar em revoadas de risos, libertos das roupas cerzidas pelas mãos hábeis de avós. Sorriam-lhe, os tendeiros, bebendo mate e ofertando de tudo um pouco.
Foi ao virar aquela esquina que umas palavras escritas na parede a fizeram parar: "La razon se pierde razonando". Assim, de pernas para o ar, como que para obrigar a uma atenção redobrada.


sábado, junho 04, 2016

Na noite de ar sereno


(Marc Chagall)



Poem for my love

How do we come to be here next to each other
in the night
Where are the stars that show us to our love
inevitable
Outside the leaves flame usual in darkness
and the rain
falls cool and blessed on the holy flesh
the black men waiting on the corner for
a womanly mirage
I am amazed by peace
It is this possibility of you
asleep
and breathing in the quiet air



June Jordan





Poema para o meu amor

Como é possível estarmos aqui lado a lado
na noite
Onde as estrelas nos desvendam o nosso amor
inevitável
Lá fora o costumeiro brilho das folhas na escuridão
e a chuva
cai fria e abençoada na carne sagrada
os homens negros à espera na esquina por
uma miragem feminina
Maravilho-me com a paz
É esta promessa de ti
adormecido
e respirando no ar sereno


June Jordan traduzida por Maria Eu

quarta-feira, junho 01, 2016

Crueza



(Herb Ritts)

"observo todo o meu corpo sem julgamentos, tacteando as memórias de que é feito. logo abaixo da virilha direita, um corte pouco profundo, que não sei de onde surgiu. a cicatriz, rubra, é recente. descendo pelas coxas, encontro mais alguns arranhões, já quase imperceptíveis, que não me merecem muita atenção. deslizo os dedos pelo joelho, sinto o despontar de alguns pêlos, não me importo, e continuo até à barriga da perna. a pequena circunferência arroxeada, que também não me lembro onde me veio, dói-me, ao toque mais profundo. pressiono com força, como uma louca teimosa.
imagino então se alguém me visse assim, marcada, à luz clara da nudez, e envergonho-me de mim."






Há muito que evito observar o meu corpo por ser incapaz de o fazer sem julgamentos. A pele do peito, logo ali, entre as mamas, que se enruga ligeiramente do peso que carrega, pintalgada de sinais, a barriga que deixou de ser lisa, a cicatriz que a cruza, encimando a zona púbica, originado uma prega, a progressiva flacidez das coxas, os tornozelos inchados. 
Vem-me uma estranha e súbita vergonha da minha nudez, ainda que seja uma nudez solitária.