Sentavam-se, a cada Junho, lado a lado, a mão direita dele repousava no joelho dela que espreitava, de uma brancura nívea, abaixo da fímbria do vestido azul, enquanto a mão esquerda dela, por sua vez, lhe enlaçava os dedos. Havia algum tempo que ficavam ali, no molhe sobranceiro ao mar agitado, tendo por música de fundo as ondas a chicotearem as rochas verdes de limo e as gaivotas em conversas de tom agudo. De quando em vez, olhavam-se, e era impossível alguém não sorrir vendo-os a olhar-se, tal o brilho que ambos irradiavam.
Muitos anos volvidos, diziam os passantes avistarem um homem e uma mulher que, a cada tarde de Junho, nadavam lado a lado no mar em frente ao molhe, entre carícias e beijos.
Naquela noite e em muitas outras que se lhe seguiram, dormiu numa casa de madeira que os pescadores costumavam usar para guardar redes. Sim, ela também tinha a sua e ali a guardava, junto às outras, as que prendiam nas suas malhas peixes prateados e, por vezes, polvos, chocos, lulas, até um tubarão, segundo o Toino da Ana Mar. "Sim, menina, um tubarão martelo, com a sua nadadeira dorsal alta a destacar-se na malha larga, os olhos ferozes e o corpo em luta. Deixá-mo-lo ir. É poderoso para lá da conta, o bicho! Nem nos atrevemos a cravar-lhe o arpão! Mas o pior, menina, o pior são as moreias. Agarram-se a um braço ou a uma perna de um homem que nunca mais somos senhores deles! Traiçoeiras, as cobras gigantes do mar!"
Os dias eram passados em longas caminhadas na areia, procurando a zona molhada, vendo as suas pegadas misturar-se com as das gaivotas, enfeitadas por algas, conchas, seixos. Depois, havia a cegonha. Chamara-lhe Flidais, como a deusa celta, já que esta tinha o poder de se metamorfosear em qualquer animal e aquela ave imponente e tranquila parecia olhá-la de maneira peculiar e protectora.
O Sul não era o que ela esperava. O azul tardava em aparecer e o vento não lhe dava tréguas. Usara a adaga para tudo um pouco: transformar as botas numas sandálias, amanhar peixe para grelhar numa fogueira sobre as dunas, descascar mangas e, até, ameaçar um ou outro mais atrevido que vinha rondar-lhe a porta de madeira sem fechadura.
Foi na manhã em que Flidais levantou voo e voltou a cabeça para a olhar, como a dizer-lhe que a seguisse, que alisou o vestido vermelho no corpo, pintou os lábios, pegou na adaga e na rede e partiu. Não estava certa de qual o seu destino, só o soube quando a cegonha, sábia como só ela, poisou no topo de uma chaminé, bem ali, no Centro, junto de duas oliveiras perfeitamente simétricas, uma ao lado da outra. a bastante distância para pendurar a rede.
Chegara ao Sul. Ao contrário do que esperava o céu não azulara e o vento, sempre louco, punha em reboliço o vestido vermelho, sem que pudesse, sequer, imitar a pose sexy de Marilyn Monroe, com os vasos de tulipas amarelas numa mão, enquanto a outra apertava ao peito o xaile preto, dedos cerrados em volta do punho lavrado da adaga de prata, lábios coloridos pelo batôn.
Perseguira-a a imensa fadiga que a levara a partir com tudo menos coisas de préstimo. Pensando bem, o vestido, o xaile, as botas de montar, os vasos de tulipas, o batôn e a adaga eram, de facto, uma lista. Uma lista tão imprestável quanto ela. Ainda assim, voltou atrás, abriu a mala do carro, e arrastou, a custo, a rede que um dia destinara pendurar em dois coqueiros.
Entrou no carro debaixo de chuva torrencial. Aviso amarelo, disseram. Coisa pouca. Um vento a agitar as árvores em danças quase exóticas, de loucas, as bátegas a ensurdecerem a música na Antena 2, quem sabe, uns lençóis de água a apimentar a condução. Não tinha um destino. O rumo que traçara era o da vida e nem esse obedecera ao desenho colorido a risos, mãos enlaçadas e tardes longas numa rede sustentada nos coqueiros de uma praia de areia branca e água incrivelmente transparente. Reconhecia o ridículo do rabisco enquanto limpava o rosto molhado com as costas da mão.
Partia. Na bagagem levava tudo menos o que seria de esperar. Sempre dissera que não era de fazer listas. No final, acabava invariavelmente por levar o supérfluo. Tinha na mala um vestido de seda vermelha, um xaile preto bordado a dourado com corações do Minho, umas botas de cano alto que usara para montar, dois vasos com tulipas amarelas, um batôn vermelho, uma adaga de prata lavrada, uma fotografia da nespereira em flor que costumava aninhar pássaros junto à janela do seu quarto e uma rede (quem sabe encontrava dois coqueiros onde pendurá-la).
Sem hesitar, pressionou o botão da ignição, acelerou e fez-se à estrada, rumo ao Sul.
Escrever pode ferir, tanto quanto é capaz de salvar. Ou, então, ser um mero exercício cujo objectivo nunca é totalmente claro para além de macular uma página em branco. E depois... E depois, há as cartas de amor.
Escrevo. Escrevo desde que me lembro de saber juntar letras, maravilhando-me como se transformavam a cada alteração de ordem. Primeiro foram isso mesmo, puzzles de letras que iam enchendo cadernos de duas linhas, numa ortografia redonda e infantil, sempre feita com mil cuidados, não fossem as palavras ficar feias. Depois, como que por magia, passei a fazer puzzles de palavras e foi aí, quando senti que era capaz de dizer no papel aquilo que queria, que se tornou um vício. Eram as anotações nos livros, os poemas nos cadernos, o diário com cadeado e chave. Hoje, como então, escrevo com uma pulsão prazerosa, acerca de tudo e de nada, mas sempre com todos os meus sentidos alerta. O blog veio trazer uma dimensão nova ao encantamento: leitores. Mais ainda, leitores que comentam, opinam… As minhas palavras são, agora, uma ponte.
(texto escrito no âmbito do desafio lançado por Miss Smile para respondermos à pergunta "Porque escreves?)