Naquele dia, a fada entrou pela janela do quarto e, enquanto ela dormia, disse:
- Quando voltares a sentar-te num baloiço e fores capaz de repetir a proeza de fazê-lo voar até dares a volta ao suporte superior sem caíres ou sem deixares que o vestido se te descomponha com o movimento, só então, serás livre.
Dali em diante, os governantes mandaram que fossem retirados todos os baloiços de onde os pudesse encontrar. Havia uns, poucos, em quintais de muros demasiado altos para serem transpostos. Nunca seria livre.
Cravou as garras no dorso da vida à falta de rédeas para segurar nas mãos. Com os joelhos apertou-a entre as pernas, esporeando-a com os pés nus. Assim a cavalga, em pêlo, cabelos soltos ao vento, livre.
Sou (de) Abril. Não sei se adivinhava, quem me foi buscar ao outro lado da vida, que era em Abril que queria olhar o mundo. É Primavera, o sol é tímido, ainda, mas benfazejo, há flores a desabrochar e as folhas despontam nos ramos secos das videiras, abrindo-se como se sorrisos. Chove, também, como se lágrimas. Uma gaivota cruza o céu azul-mar. Completo, Abril, até no cravo que se fez vermelho-canção, vermelho-revolução.
(Soldados do Corpo Expedicionário Português em La Lys. Daqui)
Aníbal Augusto Milhais (Murça,
Valongo, 9 de Julho de 1895 — 3 de Junho de 1970), mais conhecido
por Soldado Milhões, foi soldado na I Guerra Mundial e a sua
coragem na Batalha de La Lys fez dele o único soldado deste país a
alguma vez receber a Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor,
Lealdade e Mérito, no campo de batalha.
O soldado Milhões, como ficou
conhecido, abandonou a trincheira onde era o único sobrevivente,
enfrentou colunas alemãs com a sua metralhadora Lewis, Luísa, para
os portugueses, que ia reabastecendo de munições encontradas
enquanto andarilho do campo de batalha. Durante essa jornada, salva
um médico escocês de morrer num pântano e é ele que relata aos
aliados a coragem de Milhais.
Foi o comandante Ferreira do Amaral,
aquando do seu retorno para junto dos camaradas portugueses, que o
saudou, dizendo: "Tu és Milhais, mas vales Milhões!"
Valongo viu o seu nome
alterado no Parlamento para Valongo de Milhais, em honra dos feitos do filho da terra.
Milhões, contudo, não teve vida
condicente com o nome. As honrarias não lhe encheram a barriga, nem a
dos seus descendentes. Num programa recente em que a sua história
foi recordada, um deles afirmava, numa voz baça: “Cando caurcei os
primeiros sapatos, tinha 15 anos.”
Nunca tinha ouvido falar de Milhões,
mas estas palavras, ditas assim, trouxeram-me ecos da miséria e das
glórias vãs de tempos idos. Tempos que começam a parecer extraordinariamente presentes.
Despira a bata branca logo à saída do colégio. Que nervos lhe dava a bata! Logo agora, que a irmã convencera a mãe a dar-lhe uns vestido novos lindos, lindos. O vermelho de renda, então! Queria era mostrar-se, assim alindada, no caminho para casa. Ia-se mirando nos vidros das montras, com uma disfarçada vaidade.
Chegada a casa, lembrou-se que faltava apenas uma coisa, um traço de lápis preto nos olhos! A mana fazia e ficava-lhe tão bem! Com pézinhos de lã, foi até ao quarto dela, abriu a gaveta da mesinha de cabeceira, pegou no lápis e, debruçando-se na cómoda para se ver melhor ao espelho, começou a delinear o olho esquerdo cuidadosamente.
CLARA! O MEU LÁPIS! A mão escorregou e o traço ziguezagueou sem salvação. És bonita sem lápis, Clarinha! Quando fizeres catorze anos, prometo que te dou um!
Pois, bonita sem lápis! Dizia a mana, que o usava todos os dias e tinha os rapazes da vizinhança todinhos a quererem agradar-lhe... Se ao menos tivesse podido acabar de delinear os olhos antes de ir à varanda ver o Carlos José passar!
Mal sabia Clara que, pouco tempo depois, seria o Luís a roubar-lhe suspiros. E, não sabia ainda, que suspirar não era o que de melhor havia na paixão.
Descobrira que tinha um coração diferente. Treze anos. Crescera inusitadamente esse Verão de férias grandes. Mas eram mesmo grandes, as férias, com Junho, Julho, Agosto e Setembro adentro, num frenesim de correrias, jogos da macaca, do esconde-esconde e da cabra-cega, sorvetes da Rajá, língua da sogra e perseguições ao Nelinho da Tina que lhe chamava "minha beleza", provocando uma saraivada de pedras apanhadas no caminho. Mas, como estava a dizer, o seu coração não era o mesmo. Dava por ele a descompassar. Ora, o descompasso não era permanente, dava-se aquando Carlos José se lembrava de atalhar o caminho para o rio e passava mesmo ali, à beirinha da sua varanda. Então quando resolvia desviar o olhar para cima e abrir um sorriso... Jesus! É que até tinha que respirar fundo, não fosse o coração saltar-lhe do peito!
Bordou, a fio mesclado de azul-céu e azul-mar, a imensa linha do horizonte. Depois de cuidadosamente rematado, pontilhou, a cheio, esparsas nuvens brancas. O areal e as rochas desenhar-se-ão de seguida, em movimentos de pulso requebrado e dedos ágeis.
Faltaram-lhe as gaivotas. Pousaram fora do linho da paisagem, no abrigo do coração.
Foram muitos os dias em que, uma vez por semana, logo pelas nove horas da manhã, nos alinhávamos, corpos espigados de adolescentes disfarçados nos uniformes largos, em azul-marinho, descendo até abaixo dos joelhos, em exercícios de equilíbrio instável. Barriga para dentro! Peito para fora! Tu, Mariana, também não é para espetares o peito para fora do vestido, menina! Cabeças direitas! Os livros não podem cair! Olha-me esses braços, Clara, que parecem umas libelinhas tontas! Pose, meninas! Pose! Aprendíamos a andar com a postura de uma senhora, antes de nos sentarmos, joelhos juntos, pernas igualmente juntas, flectidas e levemente inclinadas para a direita. O brilho de riso no olhar, porém, fugia às regras, tal como os braços de Clara, soltos, em danças de libelinhas.
Sobre ele caíra a ira dos bravos, dos sábios, dos bons. Um de entre eles, julgara-se. Houvera jogos de xadrez, viagens exóticas, jantares regados com vinhos absurdamente caros. Mais, tinham frequentado o mesmo sofisticado e restrito clube onde partilhavam a sala de fumo de onde saíam com o travo dos Cohibas esplendidos e o sorriso displicente dos que são superiores. Agora, relegado para a cervejaria da esquina, restava-lhe sair para o vento da rua e fumar uma cigarrilha junto com alguns clientes que lhe falavam do tempo e da política corriqueira que se segue nos tablóides.
Ele ainda não sabe mas os que julgara bravos, sábios e bons eram, afinal, covardes, ignorantes e maus. A sua desgraça poderia ser a sua redenção.
"(...) o nome da mulher a quem me uni, pouco tempo depois, o apelido era Lulu. (...) Ela também me contou o seu sobrenome, mas esqueci. Eu devia ter anotado, num pedaço de papel, não gosto de esquecer nomes próprios. (...) Conheci-a num banco (...) Me dê um lugar, disse ela. (...)
O que se chama amor é o exílio, com um cartão-postal da terra natal de vez em quando, (...)."
Samuel Beckett, in "Primeiro Amor", tradução de Célia Euvaldo para a Editora Cosac& Naify
Descobrira que era capaz de partilhar. Bem, talvez não fosse exactamente partilhar mas sim sobreviver da partilha. Qual o significado de uma canção em repeat que se quer e, simultaneamente, não se quer ouvir?
Lava-se com lágrimas e veste-se com os fiapos de esperança que lhe restam. São escassos, estes, quase não lhe cobrem a nudez trémula nas manhãs que ainda se anunciam frias. Disseram-lhe que ainda há sol por vir, árvores por florescer e pássaros em trânsito pelos céus com destino ao seu olhar. É disso que Clara aquece a pele. Quem sabe vêm, os pássaros, e um deles se aninha no seu peito.
"A Geografia é uma ciência que tem como objecto principal de estudo o espaço geográfico que corresponde ao palco das realizações humanas." (definição daqui)
Ellen Bass - Ode To The God Of Atheists The god of atheists won’t burn you at the stake or pry off your fingernails. Nor will it make you bow or beg, rake your skin with thorns, or buy gold leaf and stained-glass windows. It won’t insist you fast or twist the shape of your sexual hunger. There are no wars fought for it, no women stoned for it. You don’t have to veil your face for it or bloody your knees. You don’t have to sing. The plums that bloom extravagantly, the dolphins that stitch sky to sea, each pebble and fern, pond and fish are yours whether or not you believe. When fog is ripped away just as a rust red thumb slides across the moon, the god of atheists isn’t rewarding you for waking up in the middle of the night and shivering barefoot in the field. This god is not moved by the musk of incense or bowls of oranges, the mask brushed with cochineal, polished rib of the lion. Eat the macerated leaves of the sacred plant. Dance till the stars blur to a spangly river. Rain, if it comes, will come. This god loves the virus as much as the child.
(do blog do Luís Soares)
Ellen Bass - Ode ao
Deus dos Ateus
O deus dos ateus não te queima numa estaca
nem te arranca as unhas. Sequer te fará
vergar ou implorar, castigar a tua carne com espinhos
nem comprar folhas de ouro ou janelas de vitrais.
Não te forçará a jejuar ou a distorcer
a expressão do teu apetite sexual.
Não há guerras nem mulheres apedrejadas em seu nome.
Não tens que cobrir a face com um véu
nem esfacelar os joelhos
ou cantar em seu nome.
As ameixieiras que florescem exuberantemente
os golfinhos que costuram o céu ao mar
cada seixo, feto, lago, peixe
pertencem-te, acredites ou não.
Quando o nevoeiro se dispersa
como se um dedo vermelho deslizasse pela lua
não é uma recompensa do deus dos ateus
por ter acordado a meio da noite
tremendo, descalço, no
campo.
Este deus não se enternece com almíscar
nem com incenso ou taças de laranjas
a máscara luzidia de cochinilla
costela polida do leão.
Come as folhas maceradas
da planta sagrada. Dança
até que as estrelas sejam um rio de lantejoulas.
Se a chuva cair, cairá.
Este deus ama igualmente o vírus e a criança.
(tradução de Maria Eu)