Habituara-se a que lhe segurasse a mão aos Domingos de manhã, enquanto andavam pela rua, depois de lhe ter ajeitado o laço no cabelo e endireitado as pregas da saia (sempre em desarranjo, as malditas, de se sentar no muro a ler "Os cinco" ou na conversa com a Joaninha). Já muitas meninas lhe diziam que não, não devia andar assim, de mãos dadas. Afinal, tinha doze anos! Coisa mais imprópria para uma pré-adolescente espigada que até já usava soutien!
Ela ria-se e nada a convencia que, ao menos ao Domingo, a sua mão não andasse enlaçada pela de sua mãe.
Estou certo de que não terás mais de viver comigo ou com o que resta de mim. Deixo-me adormecer durante horas para que saibas que me afasto a passos largos, com sombras por detrás.
O meu corpo, por onde quer que vá, espalha incêndios que não me recordo como apagar - pensar que um fogo assim se alimenta cresce reproduz-se e morre
e que nada mais deixa a pedir.
Para que hoje eu entre pela porta bastará que os nossos corpos se encontrem num lugar onde não vou dizer.
Chegarás, por teu pé, aonde os velhos descansam e onde cicatrizes rolam pelo corpo e pela consciência.
Com o tempo, o que não aprendeste quando nasceste torna-se inerente a ti, torna-se um braço, uma mão, um dedo que se estende na memória e que aponta no mapa da cidade a casa
as paredes e o soalho
as prisões os âmagos de quem partiu de lá - como nós.
E por hoje, fico com fome. Pelos caminhos as fogueiras como pequenos faróis no nevoeiro que levanto ao caminhar
enquanto que os meus pés se tornam rasgos na estrada e eu me diluo na multidão para ser escrito.
E um jovem toca-me no ombro e então desperto e estou próximo a dois passos do que deixei para trás.
Sérgio Xarepe
- Confluências.
Há um incêndio a cada toque, um crepitar de chamas a queimar dois corpos numa só fogueira. Ainda que depois só restem cinzas.
Olha-o no fundo daquele olhar doce e antigo, onde as memórias retêm o seu cabelo loiro de caracóis e os sapatos de verniz de Domingo com as meias brancas, rendadas, pelo joelho, eivada de uma ternura infinita. Hoje, como ontem, pese embora já não ter caracóis e o cabelo precisar de avivar a cor de quando em vez, ainda, sim, ainda é a menina de seu pai.
Faz de conta que hoje é Junho. Faz de conta que está calor. Visto a blusa branca com cornucópias verdes, a écharpe, também verde, a avivar-lhe a cor, e as calças de ganga azul-marinho. Calço as sandálias beges, Hush Puppies, de salto alto, sento-me no café de janelas envidraçadas a beber chá de rooibos, como uma torrada com manteiga e sou feliz.
Faz de conta que hoje é Junho e que amanhã vou à praia.
(Victor Nizovtsev ) Quando vieres Quando vieres, não tragas mãos vazias Enche-as das coisas mínimas da vida Podem ser conchas, pássaros, maresias A uma, outra e outra eu darei guarida Quando vieres, senta-te ao meu lado Conta-me dos barcos e das estrelas Pode até ser num tempo demorado Assim como viagens em caravelas Dir-me-ás do canto da sereia E do brilho das escamas ao luar Amando os marinheiros na areia E se acaso o cansaço te vencer Prometo tomar-te nos meus braços Aconchegado até o sol nascer
Era menina, não mais do que seis anos. Mal aprendera a ler e só desenhava umas poucas palavras. As tardes alongavam-se em correrias pelos campos, jogos de macaca, esconde-esconde... Para ela, as mães eram todas donas de casa e os pais uns senhores muito sérios que iam ganhar dinheiro para a mulher e os filhos comprarem comida, roupa e outras coisas, poucas, como um brinquedo na festa da vila, ou um gelado num ou outro Domingo.
Meninos e meninas, faziam uma roda e punham as mãos da costas para cima, prontas para serem penicadas.
"Pico-pico, sarrubico vai ao mar buscar sardinha, para o pobre do Luís. O Luís, não a quis, deu-lhe um murro no nariz, salta a pulga da balança, dá um pulo, até à França. Os cavalos a correr, as meninas a aprender qual será a mais bonita. Que se vai esconder?"
Logo corria a esconder-se aquele em cuja mão terminasse a lengalenga, continuando a brincadeira até se fartarem.
Descobriu, no dia em que a Susana chegou à rua com os olhos vermelhos de chorar, que nem todos os pais ganhavam dinheiro para comida, roupa e outras coisas, ainda que poucas. Nesse dia, a Susana disse que tinha fome e que o pai, zangado por ela pedir pão, lhe batera.
Não sabia bem porque é que havia um pai que não dava pão à filha e, ainda por cima, lhe batia, mas deixou-a ganhar todos os jogos, até vê-la sorrir.
Haveria de saber que havia muitos pais sem pão para dar aos filhos mas não ainda...
Sentam-se na fila da frente, carruagem 4, lugares 71 e 73. Falam a meia-voz. Ainda assim, é inevitável ouvi-los.
Risos. "Já viste esta? É por isso que adoro esta revista!" Uma espreitadela por entre os dois lugares permitia ver a capa da "Maria". "Deixa-me ler em paz. Esta história de amor é linda!" "Posso ler depois?" "Podes, claro!"
A sério?! A "Maria"? Há um certo sentido de superioridade intelectual a fazê-la desdenhar daqueles dois. Revista de má qualidade, com textos de péssimo gosto, conhecida pelas páginas de resposta a cartas dos leitores do mais ridículo que se possa imaginar. Mas depois observou aquele rapaz e aquela rapariga pela nesga rasgada entre os bancos. Ele a beijar-lhe a testa, a ternura na mão dela a acariciar a dele, o cuidado dele a ajeitar-lhe a cabeça no ombro quando ela queria espreitar uma página, a preocupação de ambos em nunca deixar escorregar o casaco que lhes cobria os joelhos, não fosse o outro ter frio... Desdém? Era AMOR. Que importa o que liam? De repente, foi inveja o que sentiu daqueles dois.
Clara vivia apressadamente. Sobravam-lhe os dias no internato para se calar, para chorar, para sonhar com ursos ferozes enjaulados por meninas de bata branca, soquetes e sapatos de verniz preto. Agora era tempo de usar calças à boca de sino, com 25 centímetros no fundo e a estourar as costuras de justas no rabo, ou saias às pregas absurdamente curtas. Tempo de pôr flores e lenços coloridos na cabeça, fazer tranças com fitas, usar socas com plataforma de altura vertiginosa, fumar cigarros roubados à irmã mais velha, desenhar longos risco de eyeliner negro e fazer olhinhos descarados aos rapazes do liceu. Era tempo de ser Clara.