Tenho um livro sobre águas e meninos. Gostei mais de um menino que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água. O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos. Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio, do que do cheio. Falava que vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito, porque gostava de carregar água na peneira.
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras. Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela. O menino fazia prodígios. Até fez uma pedra dar flor.
A mãe reparava o menino com ternura. A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta! Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios com as suas peraltagens, e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!
Manoel de Barros
Lembro-me de o meu pai sorrir quando me viu, um dia, a tentar salvar uma papoila, regando-a. Não usei um regador, nem qualquer recipiente mais usual nesta coisa de regar flores, daí o sorriso. Na minha inocência dos cinco anos e na urgência do salvamento, ia a correr buscar água ao tanque com as mãos em concha.
Quem sabe queria vir a ser amada pelos meus despropósitos.
Life is a stream On which we strew Petal by petal the flower of our heart; The end lost in dream, They float past our view, We only watch their glad, early start. Freighted with hope, Crimsoned with joy, We scatter the leaves of our opening rose; Their widening scope, Their distant employ, We never shall know. And the stream as it flows Sweeps them away, Each one is gone Ever beyond into infinite ways. We alone stay While years hurry on, The flower fared forth, though its fragrance still stays.
Amy Lowell
Pétalas
A vida é um curso de água
No qual desfolhámos
Pétala a pétala a flor do nosso coração;
O fim a perder-se num sonho
Elas flutuam sob o nosso olhar Nós só vemos o seu feliz e precoce início. Cheios de esperança,
Enrubescidos de alegria,
Espalhamos as folhas da nossa rosa desabrochada;
Da amplitude do seu horizonte,
Da dimensão do seu uso,
Jamais saberemos. E à medida que a água flui
Arrasta-as consigo. Vão-se uma a uma
Sempre mais longe e em incontáveis modos.
Nós quedamo-nos sós
Enquanto os anos se precipitam.
A flor partiu primeiro, mas o seu perfume permanece.
A cada dia, Maria Antónia deixa que o tempo corra como que em rajadas de vento norte, despenteando-lhe o cabelo, humedecendo- lhe os olhos, arrefecendo-lhe as mãos. Fustigam-na, de quando em vez, a par com a ventania, os grãos de saudade, iguaizinhos à areia das praias de águas frias e dunas pronunciadas que tantas vezes conhecera irada, infiltrando-se-lhe na boca, no nariz, nos ouvidos, no sexo. Toma-a, então, de mãos dadas com a saudade, um infinito cansaço. Chegada a casa, Maria Antónia senta-se no cadeirão que guarda a luz do jardim fronteiro à varanda do seu quarto, senta a saudade no colo e adormece, afagando-a.
Ficou nua.... Assim mesmo, sentada na cadeira do alpendre, o corpo alvo recortado contra o azul vibrante da parede, as curvas menos definidas, as pregas na barriga, as mamas menos firmes. Ela. Sem artifícios.
Era pela manhã que se despediam com um beijo apressado. O dia esgotava-os, depois, num sorvedouro de tarefas, repetidas até ao infinito. Corpo moído, olhar vidrado, regressavam um para o outro quando a luz do dia se extinguia, substituída pelo brilho artificial das lâmpadas. E, ao contrário do que se poderia esperar, era então que embrulhavam os seus dois cansaços num só abraço, renascendo, juntos, renovados, ardendo uma e outra vez num acto de amor infinito.
Hunter or prey Run. Run. Run. See the trigger? Feel the urge? The taste of powder The taste of blood Smell the fear? Smell the thrill? Behold the gate Behold the end Who's the hunter? Who's the prey?
Maria Eu
A caçada
Caçador ou presa Corre. Corre. Corre. Vês o gatilho? Sentes a urgência? O travo a pólvora O travo a sangue Cheiras o medo? Cheiras a excitação? Eis o portão Eis o fim Quem é o caçador? Quem é a presa?
Tocam-me como lábios, como beijos. Pássaros, sedentos de ramos e de sombra, pousam-me nos ombros. A movimentos de asa, desenham-me ainda um corpo - secreta arquitectura de água, rasgada no vento.
Maria Eduarda tinha um jeito todo especial para tirar da ponta do lápis uns desenhos que deixavam os adultos encantados. Houvesse uma nesga de papel livre e era vê-la, mãos à solta e língua de fora, a traçar linhas, a preencher cada pedacinho com flores, árvores, meninos, mar e, sobretudo, céu, muito céu iluminado por um sol rubicundo e dominante onde pontuavam voos de pássaros . Deu-lhe, um dia, para começar a desenhar casas. Havia as pequeninas, com uma porta e duas janelas; as de dois pisos, com escadarias Hollywoodescas; as que se alcandoravam serras acima, com canteiros a ladeá-las e, até, as que se empilhavam umas em cima das outras, naquela modernice dos prédios de apartamentos.
Pois que bem que ia a pequena. Era uma digna criadora de habitações imaginárias, diziam os que lhe espreitavam o tracejar por cima dos pequenos ombros. Arquitecta! Era isso que devia ser a miúda, quando crescesse! E Maria Eduarda encheu o peito de sonhos enquanto cruzava as folhas com o lápis.
Um dia, numa incursão ao sótão da madrinha, descobriu centenas de livros. Primeiro foram as capas que a atraíram, depois começou a lê-los, um a um, num frenesim que lhe era desconhecido. Ler roubou-lhe a vontade de desenhar. Desenhava, sim, mundos inteiros de palavras na sua imaginação.
Adolescente, o traço era, afinal, uma coisa hesitante de menina. As palavras, essas fluíam como um rio, em jorros luminosos. Quando deu conta, falava delas aos meninos que desenhavam flores, árvores, mar e, sobretudo, céu, muito céu com voos de pássaros.
Voltava àquela casa relutante. Vivera ali muitos anos felizes e saíra num dia triste de Inverno, quando tentara abrir a porta e a encontrou fechada, a mala pequena com alguma roupa encostada ao último degrau. Agarrara nos poucos pertences e partira, a cabeça a borbulhar na procura de uma solução, as lágrimas em catadupa. Sabia que podia acontecer. Julgava não haver coragem para o fazerem. Escolhera amar uma mulher mal-querida na aldeia. Joana era casada, mais velha 12 anos do que ele. O marido partira há muito de casa e nunca mais dera notícias. Amava-a e não o escondera.
- Um dia. Um dia, chegas a casa e tens a mala à porta!
Aquele fora o dia.
Entrou pela mesma porta que lhe tinha sido fechada usando a chave que o advogado lhe fizera chegar. E, virando-se para trás, chamou:
- Vem, Joana, podes entrar, já não mora aqui ninguém.
Maria Eduarda já não pensava naquela coisa absurda da paixão. Os anos tinham-na amadurecido o suficiente para saber que nada substituía a calma dos dias de Outono, com um chá de rooibos e uma torrada numa mesa de esplanada, junto ao mar, acompanhados por um livro e Chet Baker no headphones.
Até ao dia em que José tropeçou na cadeira que ela arrastara levemente do sítio original para esticar as pernas. Não sabia explicar se fora a voz em tom meio atrapalhado, se o olhar franco, se o toque inesperado de uma mão... Sabia, apenas, que nada foi igual dali para a frente.
Esboça um sorriso terno, sentada na mesma esplanada, com a imensidão do mar no olhar, pensando para com os seus botões que nada do que se toma por certo é definitivo e que a paixão, afinal, para além de não se esquivar de surgir em qualquer sítio, também perdura para além do pouco tempo que lhe auguram.
Com um suspiro, bebe um gole de chá e retoma o livro que segura na mão direita, enquanto aperta a de José com a esquerda.