Do meu amor sei que é forte e que me abraça como se me fosse guardar dentro do peito. Sei que tem mãos que desenham lírios no meu corpo e os rega com beijos orvalhados. Sei, também, que diz o meu nome com uma doçura de que mais ninguém é capaz.
Foi num dia claro, de céu azul, que José foi ao encontro de Ana Maria. Ela não o esperava. Ele só tinha por certeza que a veria no final da tarde. Diria, quem os visse, de mãos em conversa ansiosa por cima do tampo da mesa do salão de chá, que se desafiavam.
Nunca soube, quem os viu, como acabou o encontro de ambos mas nunca mais esqueceram a intensidade daquela dança a quatro mãos.
Havia um castanheiro no quintal da Sra. Rosalina. Este era um facto que Clarinha sabia, muito mais agora, que o Outono revelava os ouriços prenhes de castanhas gordas e reluzentes, a abri-los antes do tempo, em parto forçado. Ela bem trepava ao muro que dividia o seu quintal do da vizinha e via um desperdício de frutos, ali amontoados por entre a erva densa.
- Oh, mãe, a Sra. Rosalina não apanha as castanhas?
- E que tens tu com isso, menina? São dela, faz o que lhe aprouver!
Mas parecia que não lhe aprouvia nada pois as ditas apodreciam no chão e as que restavam em equilibrismo ouriçado iriam acabar de igual modo.
Clarinha tomou como suas as dores dessas castanhas em perigo, trepou, uma vez mais, ao muro, alçou uma perna para o outro lado e deixou-se escorregar. Havia uns ramos de videira secos que prontamente foram remexidos até que um, mais comprido, lhe serviu de extensão às mãos para varejar a árvore. Era um regalo, a chuva de castanhas! Apanhou-as para o bibe de quadrados azuis e brancos, debruado a espiguilha, que a mãe tinha costurado. Porém, logo percebeu que não poderia sair como entrara. Olhou, aflita, para o muro que, do lado em que se encontrava, era liso que só visto. Nem uma mísera reentrância para pôr um pé, ou uma pedra saliente para se agarrar. O coração batia cada vez com mais força, os olhos marejados de lágrimas. Sabia que só passando frente à casa e transpondo o portão que dava para o caminho conseguiria sair. Contou até três e desatou a correr, as mãos agarrando o bibe-fruteira. Enquanto abria, nervosamente, o portão, e se esgueirava a custo para correr em direcção a casa, ouviu a voz da Sra. Rosalina dirigindo-se-lhe em tom alto e divertido:
- Ai tu andaste-me a limpar o castanheiro? Podias ter dito que te abria o portão!
As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes, não é um filme sobre o Amor. Ou, então, talvez seja, por ter Portugal no centro de todas a histórias, por contar como somos, como estamos, o que fizeram de nós.
We wash up side by side to find each other in the speakable world, and, lulled into sense,
inhabit our landscape; the curve
of that chair draped with your shirt; my glass of water seeded overnight with air. After this bed there’ll be another, so we’ll roll and keep rolling until one of us will roll alone and try to roll the other back — a trick no one’s yet pulled off — and it’ll be as if I dreamed you, dear, as if I dreamed this bed, our touching limbs, this room, the tree outside alive with new wet light. Not now. Not yet.
Lavamo-nos lado a lado para nos encontrarmos no mundo dizível e, embalados até à percepção habitamos a nossa paisagem a curva daquela cadeira drapeada com a tua camisa o meu copo de água insuflado com ar durante a noite. Depois desta cama haverá uma outra e assim rodamos e continuamos a rodar até que um de nós rode sozinho e tente rodar
o outro de volta - um truque que ninguém conseguiu, ainda - e seria como se eu te tivesse sonhado, querido, como se eu tivesse sonhado esta cama os nossos membros tocando-se este quarto, a árvore lá fora, viva na luz recente e húmida. Não agora. Não ainda.
KATHRYN SIMMONDS, traduzida por Maria Eu
Era pela manhã que o Sr. Rodrigo passava no quiosque da Aninhas para comprar o jornal. Gostava de estar a par das notícias e o telejornal não lhe inspirava a mesma confiança que as letras de imprensa. Parecia-lhe sempre que os apresentadores tinham alguma na manga, sorrindo maliciosamente e, até, piscando o olho, como aquele que também escrevia livros de mais de duzentas páginas e a sua filha mais velha lia ao fim de semana. Notícias eram notícias, ora! Deviam ser dadas com seriedade!
- Não acha, menina Aninhas, que na televisão brincam com as notícias?
- Se acho, Sr. Rodrigo! E é tão bom ler estas letras, assim alinhadas página a página, nas folhas do jornal.
- Ai, também gosta de as ler assim?
- Todos os dias, sem falta. Pego nos maços dos jornais, logo que chegam, pelas sete da manhã, corto o fio, e ainda antes que os arrume nas prateleiras é um fartar de ler notícias! - Muito me alegra, menina! Muito me alegra!
E Rodrigo olhava, encantado, para o sorriso de Aninhas, como se a visse pela primeira vez.
Foi no jornal da terra, como deve ser, que os vizinhos leram do desaparecimento Sr. Rodrigo, empregado do café Estrela, viúvo, de 65 anos, com três filhas e cinco netos, e da Aninhas, empregada do quiosque Imprensa, solteira, de 30 anos. Passado um tempo, alguém trouxe a notícia que tinham montado uma gráfica e viviam felizes, juntos, no meio de páginas e páginas de letras alinhadas.
Havia alguma coisa em José que fazia com que Ana Maria não deixasse de pensar nele. Era o sorriso inesperado que abria as covinhas na face usualmente fechada, o levantar do sobrolho a uma interrogação, as mãos longas que desenhavam as palavras com gestos a um tempo enérgicos e suaves. E, depois, falava-lhe ao coração e à razão. Dizia-lhe dos livros, das viagens, dos sonhos e dos desejos. Era bom a dizer, o José, e Ana Maria gostava tanto de "dizeres"! Secretamente, gostava também do perfume que a inebriava quando o cumprimentava. Comprara um frasco dele e punha-o nos pulsos antes de se deitar. Dormia, assim, com José, ainda que ele o não soubesse.
Era ao fim da tarde que Manuela pegava no cesto branco, o enchia com a roupa acabada de retirar da máquina, e ia estendê-la no quintal. Era, também, ao fim da tarde, que metia no recanto mais fundo de si a vontade de esquecer a roupa suja, a máquina de lavar e o cesto vazios, e deixar-se levar pela música da telefonia numa dança que lhe desarrumasse o vestido de corte discreto e lhe despenteasse o cabelo sempre caprichado. Mas era só ao fim da tarde. Logo, a noite chegava.
Não te irei visitar.Estás em que piso? Dois? Recebes visitas, agora, ou já não? Corre-te nas veias soro com morfina. Não terás dores. Dormes, por certo. Irreconhecível, como quando vieste ao último funeral. Absurdo, não é? Encontrarmo-nos em funerais e, agora, saber que aguardo o teu... Não! Acho que não quererias que te visitasse agora. Não a ti, homem cordato, de sorriso aberto e olhar doce, mas a esse outro, inerte e pálido, adormecido numa qualquer cama de hospital. Dizem que morres. Para mim, não morrerás. Por isso, não, não te irei visitar.
Sabiam que o amor não era eterno. Tinham tropeçado nele, como se enredados no novelo de lã a ser dobado, pacientemente, pela mãe que a destina aos primeiros carapins do filho prometido. E é com a ternura, a luz, o enlevo de mãos amantíssimas que, a cada dia, se entregam um ao outro como se fosse, a um tempo, a primeira e a última vez.
While the man is away telling his wife about the red-corseted woman, the woman waits on the queen-sized bed. You'd expect her quiet in the fist of a copper statue. Half her face, a shade of golden meringue, the other half, the dark of cattails. Her mouth even— too straight, as if she doubted her made decision, the way women do. In her hands, a yellow letter creased, like her hunched back. Her dress limp on a green chair. In front, a man's satchel and briefcase. On a dresser, a hat with a ceylon feather. That is all the artist left us with, knowing we would turn the woman's stone into ours, a thirst for the self in everything—even in the sweet chinks of mandarin.
Uma mulher loira, de corpete vermelho, senta-se na cama, lendo uma carta escrita em papel amarelo. No chão, um saco masculino. Será que ele partiu para sempre e a abandonou naquele quarto de hotel, atirando-lhe palavras de adeus? Ou apenas lhe diz que, não tarda nada, voltará para a abraçar?
Oficio a un melro Eu comunícolhe a vostede, Senhor Melro, que anda a cantar tan ben no silveiral: e súa canción, souril e velha, pon unha arela de luz no meu sentir. É como si en mín nacera algún milagre ou unha roseira inefabel me apampara deixándome estantío. É como si unha voz de anxo, tan acesa, puxera no corazón tal senhardade. Pro eu comunícolhe a vostede, Senhor Melro, que non lhe diga a ninguén o seu cantar. Vostede non ten licencia da Academia e non se pode cantar sin máis nin máis.
Manuel Maria (F. Teixeiro), in 99 poemas
É que não se pode cantar assim tão bem, despertar uma repentina vontade de dançar, de abraçar, de beijar. Que me oiça, Sr. Melro, não se pode!
Ana Maria caminhava devagar, apreciando o calor tépido do entardecer. O passeio largo, onde as palmeiras se descabelavam ao vento Norte, convidava a passos tranquilos e o mar, espraiando-se em sucessivas vagas de um azul claríssimo, quase galgava o paredão, embranquecendo-o de espuma. Subiu o caminho que leva ao farol com um sorriso nos lábios. Tinha sido ali, há alguns anos, que Júlio lhe passara os braços pelos ombros desprevenidos, a puxara de encontro ao peito e lhe chamara gaivota.
Talvez por isso, não resistia a embriagar-se de mar e a deixar-se voar com as gaivotas, quem sabe em viagem até Júlio.