Há muito que Maria Antónia aprendera a calar. Calava a rebeldia, a vontade de cantar inopinadamente, os passos de dança que tendiam a ritmar-lhe o andar. De tanto calar, um dia, emudeceu.
Percorro-te o pescoço com os lábios enquanto as minhas mãos adejam, livres, o teu corpo. Dedos, como olhos, ardendo-te.
Quién alumbra
Cuando me miras mis ojos son llaves, el muro tiene secretos, mi temor palabras, poemas. Sólo tú haces de mi memoria una viajera fascinada, un fuego incesante.
Sentir. Sentir muito e mais, e ainda mais. À flor da pele. Ao esboço de um sorriso. Ao roçar leve dos dedos no contorno do rosto. Ao reflexo do sol no mar. À luz pálida e branca da lua.
Sentir primeiro, pensar depois Perdoar primeiro, julgar depois
Amar primeiro, educar depois Esquecer primeiro, aprender depois
Libertar primeiro, ensinar depois Alimentar primeiro, cantar depois
Possuir primeiro, contemplar depois Agir primeiro, julgar depois
Navegar primeiro, aportar depois Viver primeiro, morrer depois
('Fairy Islands' from the book Elves and Fairies 1916 by Ida Rentoul) The Stolen Child Where dips the rocky highland Of Sleuth Wood in the lake, There lies a leafy island Where flapping herons wake The drowsy water rats; There we've hid our faery vats, Full of berrys And of reddest stolen cherries. Come away, O human child! To the waters and the wild With a faery, hand in hand, For the world's more full of weeping than you can understand. Where the wave of moonlight glosses The dim gray sands with light, Far off by furthest Rosses We foot it all the night, Weaving olden dances Mingling hands and mingling glances Till the moon has taken flight; To and fro we leap And chase the frothy bubbles, While the world is full of troubles And anxious in its sleep. Come away, O human child! To the waters and the wild With a faery, hand in hand, For the world's more full of weeping than you can understand. Where the wandering water gushes From the hills above Glen-Car, In pools among the rushes That scarce could bathe a star, We seek for slumbering trout And whispering in their ears Give them unquiet dreams; Leaning softly out From ferns that drop their tears Over the young streams. Come away, O human child! To the waters and the wild With a faery, hand in hand, For the world's more full of weeping than you can understand. Away with us he's going, The solemn-eyed: He'll hear no more the lowing Of the calves on the warm hillside Or the kettle on the hob Sing peace into his breast, Or see the brown mice bob Round and round the oatmeal chest. For he comes, the human child, To the waters and the wild With a faery, hand in hand, For the world's more full of weeping than he can understand.
William Butler Yeats
Viesse, hoje, Yeats, numa viagem ao mundo onde vivemos e teria, decerto, escrito de novo este poema, incitando as crianças a fugir, de mãos dadas com as fadas, para a ilha onde tudo é simples, seguindo o voo das garças, os trilhos das bagas vermelhas, ou o som reconfortante de uma chaleira ao lume. Lá, onde a lua toca o solo e permite que a usem como trampolim para saltos de super heróis.
Era dia de visita. Ana Maria tinha vestido a saia preta com a blusa vermelha, calçara as sandálias de salto alto e penteara o cabelo liso, em escovadelas intensas, frente ao espelho que encimava a cómoda do quarto. Atrevera-se, mesmo, a carregar no blush e a passar um batôn de cor igual à da blusa. Saiu do quarto com ar altivo, pisando a passadeira do corredor com elegância, dobrando os cantos até à escada que dava para o salão com o coração em alvoroço. Desceu, apoiando-se no corrimão de metal amarelo, polido, igual ao dos rebites que prendiam a passadeira ao chão.
Cheirava a gardénias. Havia-as às dezenas nos jarrões espalhados pelo salão onde algumas pessoas conversavam, em pequenos grupos. Ana Maria olhou, ansiosa, para aqueles rostos, um a um, procurando reconhecer o do visitante que enviara o cartão que acompanhava os cravos vermelhos, de adorno na jarra de cristal, que há pouco se misturavam com o seu reflexo, no espelho, ao pentear-se. Só alguém que a conhecesse bem poderia escolher cravos daquela cor e acompanhá-los de um poema de Herberto Helder, despedindo-se com um "até logo".
Foi andando pelos grupos, sem conseguir perceber quem a vinha ver. Uma angústia começava a apertar-lhe o peito e a marejar-lhe os olhos de lágrimas. Foi então que se refugiou no recanto mais escondido, longe do espelho enorme, bem ao lado da porta de entrada. Tinha visto nele o reflexo de uma senhora idosa vestida exactamente como ela, de face enrugada e cabelos grisalhos, com um ar perdido e os olhos cheios de água.
- Horas do lanche, Ana Maria. Venha, vou ajudá-la a sentar-se. Porque foi buscar essas sandálias? Já lhe trago as sabrinas.
Quem era Ana Maria? Perguntava-se, ajeitando o laço da blusa, enquanto apertava na mão esquerda um cartão amarelado, escrito a tinta azul, com letra bonita, levemente inclinada.
que eu aprenda tudo desde a morte, mas não me chamem por um nome nem pelo uso das coisas, colher, roupa, caneta, roupa intensa com a respiração dentro dela, e a tua mão sangra na minha, brilha inteira se um pouco da minha mão sangra e brilha, no toque entre os olhos, na boca, na rescrita de cada coisa já escrita nas entrelinhas das coisas, fiat cantus! e faça-se o canto esdrúxulo que regula a terra, o canto comum-de-dois, o inexaurível, o quanto se trabalha para que a noite apareça, e à noite se vê a luz que desaparece na mesa, chama-me pelo teu nome, troca-me, toca-me na boca sem idioma, já te não chamaste nunca, já estás pronta, já és toda
Primeiro foi o olhar, aliado à voz que esperara. Depois continuou a ser o olhar, aliado à voz que sabia. E foi o abraço, o beijo na testa a descer para as pálpebras, a parar na boca trémula e ansiosa. Foi o corpo a arder no outro corpo, perfeitamente síncronos na maravilhosa descoberta da completude das almas.
Beso
Cuando me asomé a tus labios Un rojo túnel de sangre, Oscuro y triste, se hundía Hasta el final de tu alma.
Cuando penetró mi beso, Su calor y su luz daban Temblores y sobresaltos A tu carne sorprendida.
Desde entonces los caminos Que conducen a tu alma No quieres que estén desiertos.
¡Cuántas flechas, peces, pájaros, Cuántas caricias y besos!
Tatuara o seu nome na alma por forma a não haver processo de o remover. Doravante, a sua alma deixaria de ser um nome abstracto para se transformar num pronome.
dice que no sabe del miedo de la muerte del amor dice que tiene miedo de la muerte del amor dice que el amor es muerte es miedo dice que la muerte es miedo es amor
dice que no sabe
Alejandra Pizarnik
Vivia um amor que lhe fazia transbordar ternura do olhar. E era tanta e tão intensa, essa ternura, que tinha que fechar os olhos, não fosse inundar dela até aqueles que a não mereciam, ou a não queriam. O coração, esse, ignorava o medo da morte do amor, sendo que a ignorância o aquietava, muito embora palpitasse em batimentos ritmados de tango argentino.
Ana Maria tornara-se uma exímia costureira de recordações. Pegava nos pedaços que a faziam sorrir, desenhava-lhes o contorno e, de tesoura afiada em riste, recortava-os com o maior dos cuidados. De seguida, já munida de linha cor do céu enfiada numa agulha finíssima, costurava-os uns aos outros em pontos minuciosamente bordados, de forma a que apenas se visse uma sucessão de momentos felizes.
Só então, obra pronta, descansava, com um sorriso estampado no rosto e um brilho resplandecente no olhar.
"Coloque uma vasilha dentro d'água. A massa só alcançará o ponto exato se os ingredientes forem misturados em recipiente mergulhado na água salgada. Senão, a receita desanda.
Ingredientes:
. Homens pré-históricos do vale do Tejo e do Sado.
. Um punhado de povos indígenas, principalmente lusitanos. Se possível, da tribo liderada por Viriato.
. Celtas - apenas polvilhar.
. Romanos.
. Bárbaros: alanos caucasianos, vândalos germânicos e escandinavos, suevos e visigodos germânicos - estes últimos dissolvidos na civilização romana.
. Mouros: tribos islamizadas do Marrocos e da Mauritânia.
. Uma pitada de árabes.
. Judeus sefraditas (ibéricos) - coloque um punhado entre um ingrediente e outro. Reserve a porção maior para o final da receita.
. Cristãos a gosto.
Modo de fazer:
Coloque na vasilha os pré-históricos. Dê preferência aos que apresentarem características físicas do português contemporâneo: estatura mediana e dolicocéfalos. A arqueologia prova que os pré-históricos ibéricos já se assemelhavam aos gajos pós-modernos - ora, pois.
Tampe a vasilha com um pano úmido. Espere fermentar até se transformarem em tribos pacíficas e receptivas a ondas migratórias de vários pontos europeus. Não se preocupe se alguns, sorrateiramente, fugirem pela borda da vasilha. O ancestral do português já cultivava a vocação viajeira, muitos chegaram à Inglaterra e à Normandia. Apenas oriente os neofujões para não tomarem o rumo de Brasília. Nunca se sabe o que lhes pode acontecer.
Polvilhe um pouco de celtas. Além do charme você vai introduzir o domínio da metalurgia e a vocação para o esoterismo. Afinal, quem não gosta de druídas? Além de estarem na moda, eles acrescentarão o toque exótico ao paladar do prato. (...) Nesta altura, o português estará quase pronto.Agora, basta levar ao forno bem quente - eles são passionais, não assam em banho maria. Com o açúcar, faça uma calda em ponto de bala. Adicione cristãos a gosto, de todos os matizes e origens. Está pronto o português. Desenforme e sirva-os ao Novo Mundo."
de Menezes; Angela Dutra.O Português que nos Pariu. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, pp13-16
Angela Dutra de Menezes escreve um livro extremamente bem-humorado que começa em D. Afonso Henriques e viaja pela História de Portugal em íntima ligação com a do Brasil. Neste extracto, faltam muitos dos ingredientes da receita por ser extensa e poder afastar os que menos gostam de posts longos. Vale a pena ler esta versão leve e sorridente dos portugueses que rumaram a outros mundos, descobriram o Brasil, o colonizaram, e estiveram na génese desse país tão cheio de graça.
Apaixonara-se. Rasgava-se-lhe o peito numa ferida funda, dolorosamente aberta. A boca pedia-lhe beijos que não fossem uma mornidão de lábios em fuga na pressa de segundos. O corpo ardia-lhe noite adentro no desejo de outro corpo em complemento do seu, aquele, apenas, e não outro. Havia Carlos, era verdade. Passava por ela como se nunca o fizesse intencionalmente e abria aquele sorriso terno, sempre. Dizia-lhe das viagens, dos livros, dos sonhos. Mas não era Carlos que a arrebatava em passos de dança inesperados, mesmo sem que houvesse música.
"Se não fosse aquela história (...) teria pensado, numa vida posterior, que tinha sonhado (...). Mas ainda a contam na aldeia e riem-se dela; distanciou-se da versão original. Que coisa boa, o que o tempo faz por nós. Salpica-nos com misericórdias, como se fosse pó mágico das fadas."
Mantel, Hilary.O Assassinato de Margaret Thatcher.Edições Brilho da Letras, Lisboa, 2015. p. 47
Já viste o Sr. João? Coitado, que velho está, sempre embirrento, com um sorrizinho sarcástico. E com a filha? Um chato! Nunca me esqueço daquele par de estalos que lhe deu naquele Domingo, na vila, quando ela, a pobre, se afastou para ver um vendedor de balões.
Morreu o Sr. João! Coitado, tão novo, ainda, e tão prestável, sempre com aquele sorriso simpático. E com a filha? Ai, que carinhoso que era! Lembro-me das vezes em que os via a passear ao Domingo na vila, de mãos dadas.
O tempo e a morte parecem ter propriedades mágicas.
Dêem-me um cavalo rápido e valente. Dêem-me uma espada afiada e reluzente. Dêem-me um escudo leve e resistente. Pois parto, senhores, em árdua viagem. Foi em sonhos vários que vi o tesouro, Não havia incenso, nem mirra, ou ouro. Havia um grande azul de ferir o olhar E um abraço terno onde sempre voltar.
Dêem-me um cavalo, um escudo e uma espada. Encontrado esse abraço não o perco por nada!
Esta região, habitada sem interrupção por gente da mesma raça, passou de mão em mão até hoje, guardando sempre a sua liberdade, graças ao seu esforço. E se aqueles antepassados merecem o nosso elogio, muito mais o merecem os nossos pais. À herança que receberam juntaram, ao preço do seu trabalho e dos seus desvelos, o poder que possuímos, que nos legaram. Nós o aumentamos. E no vigor da idade ainda alargamos esse domínio, abastecendo a cidade de todas as coisas necessárias, tanto na paz como na guerra. (...)
A nossa constituição política não segue as leis de outras cidades, antes lhes serve de exemplo. O nosso governo chama-se democracia, porque a administração serve aos interesses da maioria e não de uma minoria.
De acordo com as nossas leis, somos todos iguais no que se refere aos negócios privados. Quanto à participação na sua vida pública, porém, cada qual obtém a consideração de acordo com os seus méritos e mais importante é o valor pessoal que a classe a que se pertence; isto quer dizer que ninguém sente o obstáculo da sua pobreza ou da condição social inferior, quando o seu valor o capacite a prestar serviços à cidade. (...)
Temos a vantagem de não nos preocupar com as contrariedades futuras. Quando chegam estas, enfrentamo-las com boa têmpera, como os que sempre estiveram acostumados com elas.
Por estas razões e muitas mais ainda, a nossa cidade é digna de admiração. Ao mesmo tempo em que amamos simplesmente a beleza, temos uma forte predilecção pelo estudo. Usamos a riqueza para a acção, mais que como motivo de orgulho, e não nos importa confessar a pobreza, somente considerando vergonhoso não tratar de evitá-la.
Por outro lado, todos nos preocupamos de igual modo com os assuntos privados e públicos da pátria, que se referem ao bem comum ou privado, e gentes de diferentes ofícios se preocupam também com as coisas públicas.
Nós consideramos o cidadão que se mostra estranho ou indiferente à política como um inútil à sociedade e à República.
Decidimos por nós mesmos todos os assuntos sobre os quais fazemos, antes, um estudo exacto: não acreditamos que o discurso entrave a acção; o que nos parece prejudicial é que as questões não se esclareçam, antecipadamente, pela discussão.
(...)
Túcidides, in História da Guerra do Peloponeso
A grandeza do discurso diz-nos dos gregos, da sua resiliência e da sua coragem.
algumas horas outras invadiram as sedas, os perfumes
ácidos da louça, não serão recordadas. ou quanto mais
as recordarmos, mais a ignorância deitará
os corpos no tapume de vidros, para que em torno
se conciliem as vontades singulares, as
particularidades de um impetuoso alarme.
ou seja: deixarão as esplanadas baças, os garfos
encolhidos, para que um amplo destino os atravesse.
considerem, por exemplo o paquete que ao meio-dia
digere as minuciosas palmeiras sobre a
alta insensatez dos aquedutos. ou ainda
a ilusão dos alicates ao lado da água, e o seu reflexo
do outro lado das vidraças: azul, não é?
assim estas algumas outras horas: como esquecê-las?
António Franco Alexandre
Horas azuis Há horas que se alongam em azuis para lá do tempo que nos move. Nada as impede de atravessar a liquidez dos olhares, a ternura dos dedos, o enlaçar das almas.
Maria Eu