Tinha uns sapatos novos, Idalina. Eram lindos! De verniz preto, tacão de cinco centímetros, levemente bicudos, como se usava, rematados com um laço de cetim. Idalina contava a todos como eram modernos, extraordinariamente bonitos, os seus sapatos novos mas, quando ninguém via, apressava-se a descalçá-los para sentir os pés livres.
domingo, maio 31, 2015
sábado, maio 30, 2015
Habitar um poema
('The Longing' by Jack Vettriano)
Tento empurrar-te de cima do poema
Tento empurrar-te de cima do poema
para não o estragar na emoção de ti:
olhos semi-cerrados, em precauções de tempo
a sonhá-lo de longe, todo livre sem ti.
Dele ausento os teus olhos, sorriso, boca, olhar:
tudo coisas de ti, mas coisas de partir...
E o meu alarme nasce: e se morreste aí,
no meio de chão sem texto que é ausente de ti?
E se já não respiras? Se eu não te vejo mais
por te querer empurrar, lírica de emoção?
E o meu pânico cresce: se tu não estiveres lá?
E se tu não estiveres onde o poema está?
Faço eroticamente respiração contigo:
primeiro um advérbio, depois um adjectivo,
depois um verso todo em emoção e juras.
E termino contigo em cima do poema,
presente indicativo, artigos às escuras.
Ana Luísa Amaral
Habitas o poema sem pudor. Sentas-te no verbo, pousas o copo no pronome e sorris, descaradamente, ao apor de uma vírgula.
sexta-feira, maio 29, 2015
Sagrada família
(retirada da net, sem autoria atribuída)
*de acordo com o que o Legionário diz no comentário abaixo, a imagem não corresponde à legenda e foi uma montagem com túmulos falsos. Deixo o post, porém. A guerra faz muitos órfãos, durmam eles ou não junto aos túmulos dos pais.
Criança síria dorme entre o pai e a mãe.
*de acordo com o que o Legionário diz no comentário abaixo, a imagem não corresponde à legenda e foi uma montagem com túmulos falsos. Deixo o post, porém. A guerra faz muitos órfãos, durmam eles ou não junto aos túmulos dos pais.
quinta-feira, maio 28, 2015
Carta de amor
(Vera Ferro)
Meu amor,
Dearest
you were like bits of broken glass
when the jewelry box shattered
when the jewelry box shattered
night & the ocean’s coldest shore
(love letter by Kristina Marie Darling)
Meu amor,
dói-me o peito de tanto que o meu coração bate em descompasso.
Li uma carta de amor, agora mesmo, áspera, de triste, bela, de intensa. Faltam-me, as tuas.
domingo, maio 24, 2015
sábado, maio 23, 2015
Lágrimas
(Paul Chojnowski)
Telefonou-lhe apesar de saber que iam, apenas, chorar. De um lado, ela, de coração apertado pelo sofrimento dele. Do outro, ele, com o seu amor ali ao lado, com diagnóstico reservado. Quem sabe chorarem juntos ajuda a atenuar a dor, ainda que a noite os encontre distantes.
sexta-feira, maio 22, 2015
Os meus pássaros
Já nem sei o que me parece falar sobre pássaros, agora que, chegados os dias soalheiros, tantos lhes dedicam palavras esplendorosas. Depois, penso que os meus pássaros não podem ser aqueles, já que assentaram arraiais na árvore que estica os ramos verdejantes até à janela do meu quarto, ensaiando namoros, debicando as nêsperas que começam a amarelecer, fazendo ninhos e, até, criando passarinhos ainda sem penugem, os pobres, que devem tremer de frio nestes dias de vento inusitadamente forte a assobiar por entre as folhas que lhes protegem o lar. São uns doidos, os meus pássaros. São agora mais de dez horas da noite e desataram a gorjear! Ora, não tenho notícia de doidices canoras semelhantes noutras árvores ou beirais.
quinta-feira, maio 21, 2015
Sonho danificado
(Sherry Lee Short)
Maria Luísa tinha muitos sonhos. Um dia, tropeçou num deles e, por mais que tentasse dar-lhe a forma inicial, ficou irremediavelmente amachucado.Tardava, porém, em deixá-lo para trás, como se esperasse um milagre. Secretamente, acreditava em milagres, Maria Luísa.
terça-feira, maio 19, 2015
Escabelo
(Giovanni Santiago)
Por mais que quisesse, não subia aquele lanço de escadas sem que o coração disparasse e a respiração ficasse acelerada, assomando-lhe uma "zoada" à cabeça que a apressava a sentar-se no escabelo que se encontrava logo à entrada da cozinha, em frente à porta de entrada. Aquele escabelo, dizia-lhe a avó, tinha vindo num carro de bois, ajoujado de arcas com lençóis bordados, cobertores, panos de renda, loiças finas e um tear. Sentada no meio do enxoval, viera também a visavó Madalena, mulher de peitos fartos e olhos vivos, mandada pelos pais, lavradores abastados, para casar com o menino Arturinho, rapaz magro e melancólico que se fechava horas a fio na sala dos fundos a ler e a pintar telas com paisagens imaginárias.
Conta-se que Arturinho tinha feito uma enorme birra quando o informaram da vinda de Madalena, enclausurando-se com uma resma de livros, uma caixa de gouaches, tintas pastel, pincéis e umas quantas telas em branco, abrindo apenas uma fresta da porta para receber o prato de comida que a Arminda, sua ama de leite, lhe levava às escondidas.
Ficaram, assim, Madalena e Arturinho a dormir sob o mesmo tecto sem serem apresentados. Havia, porém, uma janela na sala de reclusão e foi dela que viu, ao terceiro dia, uma rapariga voluptuosa, de sorriso aberto, a correr com o Leão, saia arregaçada, presa na mão esquerda, enquanto com a direita afastava o cabelo revolto dos olhos. Ora, o Leão não era cão para fazer amizade por dá cá aquela palha, quanto mais deixar-se enlear em brincadeiras com uma qualquer desconhecida.
Toma-se de amores pela moça, Arturinho, e sendo esta ninguém mais do que a sua prometida, o casório não tardou. Madalena também tinha achado graça ao magricela que assobiara ao cão da janela da casa grande, decidindo, ao descobrir que era ele o seu noivo, entregar-lhe o coração.
Fora naquele escabelo, onde recuperava das subidas, que os dois se tinham sentado juntos pela primeira vez, trocando palavras tímidas, talvez o primeiro beijo, com o Leão deitado aos pés de ambos.
segunda-feira, maio 18, 2015
Declaração
Era apenas um pronome, "eu", e um verbo, "amar".
Ficariam assim. O pronome por dizer e o verbo por conjugar.
sábado, maio 16, 2015
Ternura
(Michael Taylor)
É na ponta dos teus dedos que reside a ternura da curva do meu pescoço, bem ali, abaixo do lóbulo da orelha direita, de onde tantas vezes afastaste cuidadosamente madeixas de cabelo para pousares os teus lábios.
quinta-feira, maio 14, 2015
Memórias numa nuvem
(do blog Luís Desenha)
Tal como Rosalina, Maria Antónia gostava de se perder nas suas memórias. Ao contrário dela, porém, nunca as fechara à chave. Pairavam em nuvens acima da sua cabeça e faziam com que os olhos ora brilhassem, ora se enchessem de lágrimas ou escurecessem, conforme a memória que, em incursão atrevida, saísse da nuvem.
Era um gosto vê-la nos dias em que eram de alegria, essas visitas! Adivinhavam-se-lhe flores, mãos dadas, beijos, abraços, risos e rios de ternura onde nadavam peixes coloridos.
quarta-feira, maio 13, 2015
A 13 de Maio (na Cova da Iria?)
Noutros tempos, havia, neste dia e neste mês, o louvor ao milagre da Senhora cheia de luz a pairar numa azinheira, ali para os lados de Fátima, perante os olhos dos pastorinhos. Maio será, depois de 13, escrito maio, como aquele que se usa pendurar nas portas de 30 de Abril para 1 de Maio, recordando a forma engenhosa como Jesus terá escapado à morte por terem os habitantes da povoação colocado giestas em todas as portas ao constar-se que os Judeus teriam marcado com um ramo desta flor a entrada da casa onde sabiam encontrar-se o Menino.
Desta mudança continuarei espectadora pois que, no espeto, só uma bela de uma carne. Bem, concedo um peixe, umas lulas, um camarão. Reconheço, não sou crente!
segunda-feira, maio 11, 2015
Memórias num armário
(Alex Alemany)
Havia um armário no fundo do quarto grande onde, de quando em vez, ecoavam estranhos ruídos. Pareciam vozes, risos, choros, gritos... Um dia, disseram-lhe que aquele era o local onde Rosalina guardava as suas memórias. Catalogava-as por sentimentos: a Ternura, o Amor romântico, o Amor carnal, A Tristeza, A Alegria, A Dor excruciante, ... Tinha, ainda, o cuidado de ir deixando bolas de naftalina pelo meio delas, não fosse alguma traça esburacá-las, amputando-as dos detalhes. Cuidava, também, que a porta estivesse fechada com duas voltas. Afinal, as memórias eram suas e não as queria vividas por mais ninguém.
domingo, maio 10, 2015
Pergunta
(Jack Vettriano)
Se "para sempre" for o oposto de "nunca mais" qual é o oposto de "de vez em quando"?
sexta-feira, maio 08, 2015
Viagem sem mapa
(Rafel Olbinski)
“topografias em quase dicionário”
Reaprender o mundo
em prisma novo:
pequena bátega de sol a resolver-se
em cisne
sereia harmonizando o universo
Só o vento sucumbe
à demais luz
e só o vento,
como alaúde azul,
repete devagar os mesmos sons.
Não interessa onde estou,
não me faz falta um mapa
de viagem
(…)
Ana Luísa Amaral, in A Génese do Amor, 9
Olhar o mundo com um novo olhar. Não ter linhas traçadas no chão a pisar. Tão mais difícil do que planear a viagem...
quinta-feira, maio 07, 2015
Branca
Branca costumava levantar-se cedo. A cada manhã, mal se ouviam os primeiros trinados do pintassilgo que resolvera fazer sala na varanda do seu quarto, erguia-se de um salto, como se a noite lhe assombrasse o calor dos lençóis. Não tardava a estar pronta, pequeno almoço de torradas e café com leite tomado, e a casa abria-se de para em par, janelas escancaradas, deixando que a voz de Branca se juntasse à do pintassilgo numa cantoria desarvorada.
- Oh, menina, que me cansas! dizia a mãe. E o teu pai ainda está deitado, coitado, nem o deixas descansar!
Mas Branca pouco caso fazia e, quando muito, saía para o quintal e ia sentar-se debaixo da nespereira onde o pássaro cantor tinha o ninho, calando a voz mas cantando na mesma.
segunda-feira, maio 04, 2015
Golpe de vento
Sai de casa apressada, como de costume. O vento fustiga-lhe a cara e as mãos nuas. Traz-lhe uma irritação inquietante, o vento, assim forte e descontrolado. Rolam pedaços de guarda-chuvas pela praça e milhares de pequenas partículas de folhas, papéis, resíduos de lixo, formam espirais visíveis que se recortam no ar. Ramos de árvore caem ali ao lado.
Morreu um homem, hoje, junto à praça. Havia um ramo com o nome dele escrito a ser levado pelo vento inusitadamente violento.
domingo, maio 03, 2015
sábado, maio 02, 2015
Rasga-me
(Graham Dean)
Encargo
No me des tregua, no me perdones nunca.
Hostígame en la sangre, que cada cosa cruel sea tú que vuelves.
No me dejes dormir, no me des paz!
Entonces ganaré mi reino,
naceré lentamente.
No me pierdas como una música fácil, no seas caricia ni guante;
tállame como un sílex, desespérame.
Guarda tu amor humano, tu sonrisa, tu pelo. Dalos.
Ven a mí con tu cólera seca de fósforo y escamas.
Grita. Vomítame arena en la boca, rómpeme las fauces.
No me importa ignorarte en pleno día, saber que juegas cara al sol y al hombre.
Compártelo.
Yo te pido la cruel ceremonia del tajo,
Lo que nadie te pide: las espinas
Hasta el hueso. Arráncame esta cara infame, oblígame a gritar al fin mi verdadero nombre.
Julio Cortázar
Encargo
No me des tregua, no me perdones nunca.
Hostígame en la sangre, que cada cosa cruel sea tú que vuelves.
No me dejes dormir, no me des paz!
Entonces ganaré mi reino,
naceré lentamente.
No me pierdas como una música fácil, no seas caricia ni guante;
tállame como un sílex, desespérame.
Guarda tu amor humano, tu sonrisa, tu pelo. Dalos.
Ven a mí con tu cólera seca de fósforo y escamas.
Grita. Vomítame arena en la boca, rómpeme las fauces.
No me importa ignorarte en pleno día, saber que juegas cara al sol y al hombre.
Compártelo.
Yo te pido la cruel ceremonia del tajo,
Lo que nadie te pide: las espinas
Hasta el hueso. Arráncame esta cara infame, oblígame a gritar al fin mi verdadero nombre.
Queria tudo. Queria a doçura dos lábios e o rasgar dos dentes, as carícias leves dos dedos e o cravar das unhas, o sorriso suave e o esgar de gozo. De nada lhe dessem a metade. Da outra metade ficaria sempre à míngua, sufocando na vontade do grito último e fero.
sexta-feira, maio 01, 2015
Voo em azul
(Amy Judd)
Sem mais nem para quê, viu-se pássaro a cruzar os ares. E, nesse céu imenso, voou, por fim, ao lado do pássaro azul.
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