"Um beijo muda tudo muda o quê. Diga-se que ter beijado aquela pessoa, e estar perto de chamar-lhe agora «aquela pessoa», mudava tudo num momento, diga-se então como é que foi:
Foi a minha vida a girar ao contrário, ter tocado no fundo noutro corpo, tê-la ouvido falar de mim como se falasse de si das suas próprias forças - o pássaro do paraíso batendo asas ao contrário, um retorno inesperado à hora antiga em que deuses e demónios não se reconheciam nem como imagem uns dos outros.
Não havia espelhos que me ajudassem agora, estava tudo reflectido, a minha vida não ia ser feita para me amparar, eu tinha amparado a cabeça noutro ombro, e nunca mais seria o mesmo.
«Não fiz camadas do meu ser só para ti.» Mas parecia que era isso."
Retirado de Osmose, conto de Sérgio Godinho, no seu novíssimo livro "Vidadupla", título escrito assim, as duas palavras juntas, como as duas vidas que, afinal, são uma só. Diz o Sérgio que a escrita é musical. Tem que ser musical, como dizia Cèline, ter "la petite musique".