quarta-feira, julho 22, 2015

"já te não chamaste nunca" HH

(Tony Goran)

Era dia de visita. Ana Maria tinha vestido a saia preta com a blusa vermelha, calçara as sandálias de salto alto e penteara o cabelo liso, em escovadelas intensas, frente ao espelho que encimava a cómoda do quarto. Atrevera-se, mesmo, a carregar no blush e a passar um batôn de cor igual à da blusa. Saiu do quarto com ar altivo, pisando a passadeira do corredor com elegância, dobrando os cantos até à escada que dava para o salão com o coração em alvoroço. Desceu, apoiando-se no corrimão de metal amarelo, polido, igual ao dos rebites que prendiam a passadeira ao chão. 
Cheirava a gardénias. Havia-as às dezenas nos jarrões espalhados pelo salão onde algumas pessoas conversavam, em pequenos grupos. Ana Maria olhou, ansiosa, para aqueles rostos, um a um, procurando reconhecer o do visitante que enviara o cartão que acompanhava os cravos vermelhos, de adorno na jarra de cristal, que há pouco se misturavam com o seu reflexo, no espelho, ao pentear-se. Só alguém que a conhecesse bem poderia escolher cravos daquela cor e acompanhá-los de um poema de Herberto Helder, despedindo-se com um "até logo".
Foi andando pelos grupos, sem conseguir perceber quem a vinha ver. Uma angústia começava a apertar-lhe o peito e a marejar-lhe os olhos de lágrimas. Foi então que se refugiou no recanto mais escondido, longe do espelho enorme, bem ao lado da porta de entrada. Tinha visto nele o reflexo de uma senhora idosa vestida exactamente como ela, de face enrugada e cabelos grisalhos, com um ar perdido e os olhos cheios de água.

 - Horas do lanche, Ana Maria. Venha, vou ajudá-la a sentar-se. Porque foi buscar essas sandálias? Já lhe trago as sabrinas.

Quem era Ana Maria? Perguntava-se, ajeitando o laço da blusa, enquanto apertava na mão esquerda um cartão amarelado, escrito a tinta azul, com letra bonita, levemente inclinada.



que eu aprenda tudo desde a morte,
mas não me chamem por um nome nem pelo uso das coisas,
colher, roupa, caneta,
roupa intensa com a respiração dentro dela,
e a tua mão sangra na minha,
brilha inteira se um pouco da minha mão sangra e brilha,
no toque entre os olhos,
na boca,
na rescrita de cada coisa já escrita nas entrelinhas das coisas,
fiat cantus! e faça-se o canto esdrúxulo que regula a terra,
o canto comum-de-dois,
o inexaurível,
o quanto se trabalha para que a noite apareça,
e à noite se vê a luz que desaparece na mesa,
chama-me pelo teu nome, troca-me,
toca-me
na boca sem idioma,
já te não chamaste nunca,
já estás pronta,
já és toda

Herberto Helder, in A Faca não Corta o Fogo

21 comentários:

  1. Belíssimo querida Maria Eu.
    Até logo,
    Outro Ente.

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  2. Há dias assim Maria
    dias d'alma vaga :)

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  3. "Poesia sem perdão ou esquecimento"
    Gosto tanto do Herberto
    Bj Maria

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    1. Não me canso dele, também.

      Beijo, Ana, e um bom dia. :)

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  4. Tão triste, tão bonito.
    Um beijinho Maria

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    1. Perdemo-nos de nós guardando sempre uma parte.

      Beijos, Té, e um bom dia. :)

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  5. Um até logo e um ar perdido até de novo se encontrar.
    Magnifica homenagem.
    Beijo Maria

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  6. Sempre o espelho a chamar-nos à realidade e, no entanto, ainda agora o vermelho, a paixão, na mão.
    Maria, isto no cocuruto do céu. Parabéns.

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  7. Muito, muito obrigada, Agostinho.

    Uma boa noite. :)

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  8. Por que é que esse ambiente me é tão familiar?
    Belíssimo, assim descrito.
    Beijos, Maria :)

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    1. Sabes? Escrevi-o contigo no pensamento e a imaginar-me num futuro que pode ser assim.

      Beijos, Linda, e obrigada. :)

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  9. A melancolia também vive no futuro.
    bjn amg

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