Era dia de visita. Ana Maria tinha vestido a saia preta com a blusa vermelha, calçara as sandálias de salto alto e penteara o cabelo liso, em escovadelas intensas, frente ao espelho que encimava a cómoda do quarto. Atrevera-se, mesmo, a carregar no blush e a passar um batôn de cor igual à da blusa. Saiu do quarto com ar altivo, pisando a passadeira do corredor com elegância, dobrando os cantos até à escada que dava para o salão com o coração em alvoroço. Desceu, apoiando-se no corrimão de metal amarelo, polido, igual ao dos rebites que prendiam a passadeira ao chão.
Cheirava a gardénias. Havia-as às dezenas nos jarrões espalhados pelo salão onde algumas pessoas conversavam, em pequenos grupos. Ana Maria olhou, ansiosa, para aqueles rostos, um a um, procurando reconhecer o do visitante que enviara o cartão que acompanhava os cravos vermelhos, de adorno na jarra de cristal, que há pouco se misturavam com o seu reflexo, no espelho, ao pentear-se. Só alguém que a conhecesse bem poderia escolher cravos daquela cor e acompanhá-los de um poema de Herberto Helder, despedindo-se com um "até logo".
Foi andando pelos grupos, sem conseguir perceber quem a vinha ver. Uma angústia começava a apertar-lhe o peito e a marejar-lhe os olhos de lágrimas. Foi então que se refugiou no recanto mais escondido, longe do espelho enorme, bem ao lado da porta de entrada. Tinha visto nele o reflexo de uma senhora idosa vestida exactamente como ela, de face enrugada e cabelos grisalhos, com um ar perdido e os olhos cheios de água.
- Horas do lanche, Ana Maria. Venha, vou ajudá-la a sentar-se. Porque foi buscar essas sandálias? Já lhe trago as sabrinas.
Quem era Ana Maria? Perguntava-se, ajeitando o laço da blusa, enquanto apertava na mão esquerda um cartão amarelado, escrito a tinta azul, com letra bonita, levemente inclinada.
que eu aprenda tudo desde a morte,
mas não me chamem por um nome nem pelo uso das coisas,
colher, roupa, caneta,
roupa intensa com a respiração dentro dela,
e a tua mão sangra na minha,
brilha inteira se um pouco da minha mão sangra e brilha,
no toque entre os olhos,
na boca,
na rescrita de cada coisa já escrita nas entrelinhas das coisas,
fiat cantus! e faça-se o canto esdrúxulo que regula a terra,
o canto comum-de-dois,
o inexaurível,
o quanto se trabalha para que a noite apareça,
e à noite se vê a luz que desaparece na mesa,
chama-me pelo teu nome, troca-me,
toca-me
na boca sem idioma,
já te não chamaste nunca,
já estás pronta,
já és toda
Herberto Helder, in A Faca não Corta o Fogo
"...a tua mão sangra na minha,"
ResponderEliminarToca-nos, o poema...
EliminarBom dia, Rogério. :)
Belíssimo querida Maria Eu.
ResponderEliminarAté logo,
Outro Ente.
Muito obrigada!
EliminarAté logo, caro Ente. :)
Uma bela homenagem Maria :)
ResponderEliminarBeijos.
Beijos, I, e um bom dia. :)
EliminarGrande HH, um beijo Maria
ResponderEliminarEnorme.
EliminarBeijo, ars, e um bom dia.
Há dias assim Maria
ResponderEliminardias d'alma vaga :)
Nostálgicos.
EliminarBom dia, caro Legionário. :)
"Poesia sem perdão ou esquecimento"
ResponderEliminarGosto tanto do Herberto
Bj Maria
Não me canso dele, também.
EliminarBeijo, Ana, e um bom dia. :)
Tão triste, tão bonito.
ResponderEliminarUm beijinho Maria
Perdemo-nos de nós guardando sempre uma parte.
EliminarBeijos, Té, e um bom dia. :)
Um até logo e um ar perdido até de novo se encontrar.
ResponderEliminarMagnifica homenagem.
Beijo Maria
Beijos, SD, e um bom dia. :)
EliminarSempre o espelho a chamar-nos à realidade e, no entanto, ainda agora o vermelho, a paixão, na mão.
ResponderEliminarMaria, isto no cocuruto do céu. Parabéns.
Muito, muito obrigada, Agostinho.
ResponderEliminarUma boa noite. :)
Por que é que esse ambiente me é tão familiar?
ResponderEliminarBelíssimo, assim descrito.
Beijos, Maria :)
Sabes? Escrevi-o contigo no pensamento e a imaginar-me num futuro que pode ser assim.
EliminarBeijos, Linda, e obrigada. :)
A melancolia também vive no futuro.
ResponderEliminarbjn amg