entregámo-nos um ao outro dentro dos lençóis brancos à tarde na posição mais ortodoxa e agora sabemos e não sabemos um do outro escrevemo-nos escrevemos
1. O que há de melhor e se valoriza mais (numa sociedade). = ESCOL, FINA FLOR, NATA
2. Minoria social que se considera prestigiosa e que por isso detém algum poder e influência.
(in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, consultado em 30-03-2015)
As elites funcionam de forma gregária. Agrupam-se, procuram-se, elogiam-se. Criam uma linguagem própria, cheia de referências de todo o tipo, das literárias às filosóficas. Por vezes, um estranho que aprecia algumas das suas formas de expressão, aproxima-se. Não que pretenda integrar o grupo mas porque, genuinamente, lhe parece que pode interagir, ainda que pontualmente. É então que percebe a não-pertença. Pode, simplesmente, ser ignorado ou, pior ainda, ser objecto de troça. Troça burilada, intelectualizada, mas é-o, na mesma. As elites perdoam as concordâncias, as discordâncias, as interferências, desde que partam dos seus pares. Há que aprender que se deve deixá-las em paz. Muitas já se desmantelaram com a sua própria soberba.
(...) Saudade... Oiça, vizinho, sabe o significado desta palavra branca que se evade como um peixe? Não... e treme-me na boca o seu tremor delicado... Saudade... Pablo Neruda, in "Crepusculário"
E às vezes, sem quê nem porquê, vem aquela dormência no coração, aquela que tem nomes e lugares gravados e se chama saudade... Como se mata a saudade?
A cegueira que cega cerrando os olhos, não é a maior cegueira; a que cega deixando os olhos abertos, essa é a mais cega de todas: e tal era a dos Escribas e Fariseus. Homens com os olhos abertos e cegos. Com olhos abertos, porque, como letrados, liam as Escrituras e entendiam os Profetas; e cegos, porque vendo cumpridas as profecias, não viam nem conheciam o profetizado.
(...) Esta mesma cegueira de olhos abertos divide-se em três espécies de cegueira ou, falando medicamente, em cegueira da primeira, da segunda, e da terceira espécie. A primeira é de cegos, que vêem e não vêem juntamente; a segunda de cegos que vêem uma coisa por outra; a terceira de cegos que vendo o demais, só a sua cegueira não vêem.
Padre António Vieira, in "Sermões"
Somos, por estes dias, um mundo de cegos. A nossa cegueira parece manifestar-se em todas as três espécies, agudizando-lhe os efeitos. Foge-se da "responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam", como dizia Saramago, talvez porque ver traz responsabilidades mais fundas.
Enfadam-na, as compras por atacado nos shoppings onde se (des)encontram tantos que nem se podem contar. Entra numa loja e passa devagar frente às roupas dependuradas por cores. Começa no bege, passa ao castanho, depois ao verde, ao preto, ao azul... Aflige-a que não fiquem alinhadas, da desarrumação a que as sujeitam as mãos que as tocam, as remexem, as enrugam. Os casacos que abraçam os vestidos só com uma manga, as blusas abotoadas em casas alternadas, os fatos descasados, assemelham-se-lhe aos casais com que se cruza: ela, apressada em entrar nas lojas e repetidamente abrir e fechar as cortinas dos provadores , ele, a deixar-se ficar no átrio, sentado na poltrona.
Sai sem comprar nada. Quem sabe encontra, numa esconsa loja de rua, um casaco abraçado a um vestido como se o não queira deixar?
Hoje, o dia amanheceu cinzento e frio. Havia pouca gente na rua, quando saiu para respirar a Primavera incipiente e escura. Deixou que os passos a levassem até onde já se sentara, de sorriso estampado no rosto, a ouvir histórias de paragens azuis com vento Suão. O chá de rooibos estava bom. Foi esvaziando o bule devagar, sem vontade de regressar à rua. Curiosamente, ao transpor a porta, na saída, o sol raiava como se antes não tivesse estado oculto em cor e temperatura. Estugou o passo e escapou-lhe. Em casa, ainda está frio, como se quer na tristeza.
I A névoa disse à árvore: tu, cedro, perdes a tua forma, se eu te abraço. Disse o cedro: o Sol ama-me mais, toma o meu corpo inteiro no seu corpo e dá-lhe ser, figura.
II Ver o cortejo de cedros e acreditar que é o cenário. Depois, estender a mão através da longa perspectiva oblíqua e poder apalpar, na pele, que também os cedros têm corpos húmidos, saliva, à espera do Amor.
Fiama Hasse Pais Brandão
O Amor faz-se sol, toma-lhe o corpo, e logo, em oferenda, o corpo se dá, boca ávida de beijos.
O instante luminoso de um abraço Um bater de pestanas num olhar Uns lábios pousados nos dedos O eco de uma voz Uma palavra Um sorriso Uma carícia Um grito Um momento...
Estranha-se de si e deixa que os dedos procurem, na parte de trás da nuca, bem ali, no ponto onde o fecho encaixa, entre o crânio e a cervical. Segura-o pela pega, entre o polegar e o indicador, e puxa. Primeiro devagar, sentindo-o ceder, revelar cada elo da coluna. Que estranho sentir o frio da casa a entrar no osso, assim, desnudo. Logo, impaciente, abre-o com mais pressa. Tem que ajudar com a outra mão, já que passa pela lombar em direcção ao cóxis. Despega-se-lhe a carne dos ossos que ficam espantosamente limpos e reluzentes. As pernas, de seguida. Depois os pés. Jaz, no chão, um corpo desossado, como o de um peru para rechear (estranha imagem, essa, que lhe vem do Natal da infância). Só a cabeça se mantém intacta. Como se fosse uma excrescência, uma aberração. Olha-se ao espelho. De novo tacteia, desta sorte por baixo do cabelo. Lá está! O fecho mais pequeno e recôndito que, uma vez aberto, deixará o crânio exposto. De um gesto, abre-o. Juntam-se, no chão, a cara e o escalpe ao corpo inteiro. Limpa da carne, restam o esqueleto e o cérebro. Ainda é muito. Ainda consegue pensar.
(...) Lembro-me de que essa manhã foi invadida por um aguaceiro desalmado, ouvia-se uma chuva grossa e pesada lá fora mas deve ter sido passageira porque quando acabou a Edite ainda estava ao telefone. A partir de então tudo o que sei é que me pus ao espelho da casa de banho a barbear-me com a passividade de quem está a barbear um ausente - e foi ali.
Sim, foi ali. Tanto quanto é possível localizar-se uma fracção mais que secreta de vida, foi naquele lugar e naquele instante que eu, frente a frente com a minha imagem no espelho mas já desligado dela, me transferi para um Outro sem nome e sem memória e por consequência incapaz da menor relação passado-presente, de imagem-objecto, do eu com outro alguém ou do real com a visão que o abstracto contém. Ele. O mesmo que a mulher (Edite, chama-se ela mas nada garante que esse homem ainda lhe conheça o nome, que não a considere apenas um facto, uma presença) exacto, esse mesmo Ele, o tal que a Edite irá encontrar, não tarda muito, a pentear-se com uma escova de dentes antes de partirem de urgência para o Hospital de Santa Maria e o mesmo que, dias depois, uma enfermeira surpreenderá em igual operação ao espelho do lavatório do quarto.(...)
DE PROFUNDIS, VALSA LENTA, José Cardoso Pires
Havia um homem forte, de mãos que entravam trabalho adentro com a vontade de um amante furioso. Não sei se algum dia terá dito "amo-te" ou se apenas terá abraçado sem palavras. Pequeno, era rebelde. Adulto, foi servil. Um dia, não era ele aquele que os outros viam. Talvez por dentro fosse o mesmo mas as palavras se tivessem tornado (ainda mais) difíceis. As mãos, essas continuam extraordinariamente fortes, a contrastar com o corpo, entrando abraços adentro.
Um dia, a partida anuncia-se e, surpreendentemente, a vida continuará a fazer sentido em lugares inimagináveis, ainda que ele continue presente em todos os poemas e a ela lhe cresçam no peito flores e na cabeça asas, como no tempo em que era amada.
Tinha recebido a carta na Segunda-feira e,
apesar de ser já Domingo, não a abrira. A letra elegante e levemente
inclinada para a direita do endereço era-lhe por demais familiar. Fora
buscar a correspondência, como era hábito, à caixa de correio do portão
da quinta. Chovia. Havia uma quantidade infernal de prospectos
publicitários e, no meio deles, o envelope branco, onde ressaltava a
letra azul com o seu nome e endereço. Não constava remetente, nem seria
preciso.
O almoço foi lauto. Mesmo
sozinha, dera-se ao trabalho de assar uma perna de cordeiro com
batatinhas novas, polvilhadas com tomilho, e de saltear grelos em azeite e
alho. A ementa pedia um vinho tinto. Abriu uma garrafa de Chryseia 2009
e bebeu com prazer, deixando-a pela metade. O envelope, pousara-o
frente ao prato, onde o podia ver. Já estava em mau estado, de ter sido
guardado no bolso do casaco de malha durante dias.
"- Abro-o depois da sobremesa." pensou, enquanto escolhia um figo na fruteira.
Maria
do Carmo abriu as janelas de par em par, deixando entrar o sol a jorros
na sala. Era tempo de arrumar os pertences da mãe. A sua morte súbita
deixara-a com um buraco no peito e a casa permanecera fechada desde o
funeral, há mais de um ano. Na sala de jantar, chamou-lhe a atenção uma
mancha branca junto à carpete onde assentava a mesa. Baixou-se para ver
melhor e, puxando-a, descobriu um envelope com o nome da mãe e o
endereço escritos a azul, numa letra elegante e inclinada para a
direita. Tinha sido aberto cuidadosamente, pois não apresentava sinais
de rasgado. Puxou a carta que continha.
Encontraram-se por acaso nas esquinas de um texto. Tropeçaram nas palavras. Enlearam-se em paráfrases, metáforas, hipérboles. Fizeram novos textos. Tantos que nem se davam conta das histórias, dos enredos, dos detalhes minuciosos que teciam. Um dia, desfolharam um mal-me-quer. Mal-me-quer... Bem-me-quer... Mal-me-quer... Bem-me-quer... Ficou uma pétala e nenhum deles foi capaz de a arrancar.
Hold fast to dreams For if dreams die Life is a broken-winged bird That cannot fly. Hold fast to dreams For when dreams go Life is a barren field Frozen with snow.
Langston Hughes
Agarra-te aos sonhos com unhas e dentes Porque quando os sonhos se desvanecem A vida é um pássaro de asa partida Que não pode voar. Agarra-te aos sonhos com unhas e dentes Porque quando os sonhos se desvanecem A vida é um campo árido Congelado pela neve.
Langston Hughes, traduzido livremente por Maria Eu
"Já não acredito em margens. E para quê levantar a cabeça, quando o céu está podre e não me sobra alma para cartografar a luz que se passeia, melancólica, pelas moradas antigas nos postais dos mares do sul. Vivemos de coordenadas fixas: não partimos sem destino, não buscamos sem gps, não nos perdemos. Também não nos encontramos. O tempo, hoje, não dura sequer uma estação. Repete-se (revende-se?) em décimas de segundo, recordes, episódios, temporadas, turnos, contratos, gerações, moedas que caem na ranhura do hábito em troca da canção errada. Vendi as lembranças já não me lembro a quem, cortaram os subsídios para o presente, ando a pagar os sonhos a prestações. Mas amo quem me ofusca e acentua depois a escuridão dentro de mim - uma espécie de fogo a crédito. Roubado."
in Revista Cão Celeste n.º2
De vez em quando, não somos senão o reflexo da luz intensa de alguém, iluminação provisória e perecível. Sós, fica a escuridão.
sol na cara; sorrisos abertos; pássaros em voos rasgados ; abraços apertados; mãos que se entrelaçam; beijos, todos; conversas; poesia; romance; escrever; sonhar; cinema; música; mar; estrelas; luar; cuidar; mimar; sexo; sonhar; calças de ganga; túnicas; blusas brancas; lingerie preta; tacões altos; lençóis de algodão; casacos confortáveis; sofás usados; bolacha maria com café com leite; café; morangos; maçãs com casca; uvas brancas; chocolate; viagens; brincos compridos; anéis grandes; écharpes; jogos de sedução; palavras ao ouvido; pequenos almoços na cama; dar e receber carinho; limonada; castanhas assadas com manteiga; mordidelas nos ombros; olhares frontais; apertos de mão vigorosos; desenhos animados; batôn de cor forte; perfumes leves; girassóis; cravos vermelhos; oliveiras; chuva de Verão; fotografia; pintura; canela; cor azul; unhas envernizadas; lápis dos olhos preto; jantares com amigos; dizer uns palavrões na hora certa; andar na areia molhada; posições firmes; água fresca; massagens; provocações; presentear; compras nas lojas de rua ; brinquedos; deitar-me tarde; levantar-me tarde; erotismo; passar a mão no cabelo do "meu" homem; verdades, mesmo que duras; rios; cantar; conduzir sem rumo; o(s) meu(s) amor(es).
Todos os dias, havia já alguns anos, recebia uma mensagem dele. Mandava-lhe beijos e chamava-lhe flor. Sabia que não responderia. Sabia que não a veria. Ainda assim, continuava a florir-lhe de beijos o ecrã.
Do reconhecimento da geografia das palavras resultara a sedução. No relevo do corpo, atravessado em gestos longos dos dedos feitos viajantes, revelou-se a paixão. Primeiro, ele. Depois, ambos. Depois, ela.
Caberia, nas viagens que faziam, o tamanho dos seus dois corações?
Desde pequena que lhe sobrava uma ânsia de partir. Quis saber, primeiro, como era o mundo. Levaram-na da casa com a varanda decorada a begónias para dormir num salão onde se perfilavam camas de ferro de um acanhamento só irmanado pelas mulheres que lhe ditavam as horas de deitar e levantar, vigiando-lhe os gestos diários. Aprendeu que nunca se obedece quando a liberdade periga. Pode-se, quando muito, fingir obediência enquanto se estudam formas de a boicotar.
Partiu, a seguir, para experimentar o sol a qualquer custo, em leituras pela noite fora. Todas menos as obrigatórias.
Num Verão encontrou-se com a Língua Portuguesa de manhã até à noite, fechada, agora por vontade sua, com as palavras a sufocarem-lhe a voz e a esmagarem-lhe o peito de emoção.
Levava livros abraçados para a cama, ainda que fossem os que antes tinham sido obrigatórios.
Caía-lhe, então, o mundo em catadupa, na estreiteza do leito, alargando-lhe o horizonte para lá de todas as paredes, reais ou imaginárias.
Kusum ve ben bir aynada
uyuyoruz, kafesimiz yatagimiz
yüzlerimiz eslerine baka baka
sonsuz kar altinda uyuyoruz
kusum ve ben.
Esim ve ben kizil bir bagla
bagliyiz birbirimize
Çözülürse yoksulluk sevinir
Aynamizin içinde tek bu bag...
Kizil kiskanç esim kusum ve ben...
Nilgun Marmara
My bird and I
My bird and I are fast asleep
reflected in a mirror, our cage our bed
our visages reflecting that of one another
we sleep beneath the eternally falling snow
my bird and I.
A crimson ribbon binds us – my mate and I
indelibly together.
Destitution would delight in its severance.
In our mirror there's naught beyond this bond...
This crimson tie between us -- my mate my bird and I...
O meu pássaro e eu profundamente adormecidos
reflectidos num espelho, a nossa gaiola, nossa cama
os nossos rostos reflectindo-se um no outro
dormimos sob a neve que cai ininterruptamente
o meu pássaro e eu.
Une-nos uma fita carmesim - ao meu homem e a mim
indelevelmente juntos.
O desamparo regozijar-se-ia se esta se rompesse.
No nosso espelho há um nó para além deste elo
Esta fita carmesim que nos ata - o meu homem, o meu pássaro e eu...
Tradução, a partir da versão em Inglês, de Maria Eu
Insinua-se a morte por estes dias com uma agudeza gélida. Passeia-se pelas casas, acompanha alguns, com displicência, até ao hospital. De quando em vez ausenta-se, fica a fumar um cigarro, às vezes dois ou três, e então regressa e instala-se, definitivamente.
É uma grande filha da puta, a morte! Diz que vai só ali matar o vício do tabaco para disfarçar...
Visitava-a o amor noite adentro, em passos leves. Nunca o viu. Porém, de manhãzinha, havia sempre um pássaro em trinados doidos no beiral da janela do seu quarto.