terça-feira, janeiro 07, 2020

Arritmia

(Henri Matisse)


Havia anos, Maria Clara tinha entregue o seu coração a Pedro. Era um coração quase perfeito, não fora a súbita arritmia que o acometia sempre que na presença dele.
Levara-lho assim, vermelho vivo e arrítmico, num dia de frio invernoso, encostando o peito ao dele até que os batimentos se acertassem naquele peito que não era o seu. Não tardou em descobrir a falta que lhe fazia, em estando Pedro ausente. Parecia que uma dor muito funda se aninhava bem ali, no lugar vazio.
Quando, tempo volvido, lhe bateu um mensageiro à porta com uma encomenda cuidadosamente embrulhada numa caixa forrada a cetim preto, Maria Clara percebeu que, rutilando no fundo negro, um coração lívido, com uma ferida profunda de onde escorria sangue, era o seu. Dissera-lhe o portador que o homem de quem tomara a caixa lhe pedira que a informasse que não suportava mais o bater de dois corações que não tinham o mesmo ritmo.
Levou-o para o quarto, sentando-se com ele no regaço, hesitando em retomá-lo, quase como se temesse rejeitá-lo, de tanto que se lhe estranhara. O implante revelou-se penoso, mas não tardou que um súbito aconchego lhe consolasse  corpo e alma. Afinal, um coração só pode partilhar-se com alguém que saiba como dois ritmos em descompasso são predispostos às mais assombrosas melodias.



15 comentários:

  1. Quando se entrega o coração a um Pedro a arritmia é quase uma certeza e uma inevitabilidade.
    Boa semana

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  2. O ritmo é fundamental dizem os apreciadores de swing. Será que se referem a um ritmo dual? Beijinhos Maria!

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  3. Voltamos com gratidão por todos vós, desejando um óptimo 2020. Para poder chegar a todos, hoje, numa breve visita. Bem hajam por não nos terem abandonado.

    Hoje : A fé de voltar...

    Bjos
    Votos de uma óptima Terça - Feira.

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  4. Uma história muito original e bela. Gostei imenso.
    Um beijo.

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  5. Parece-me tinha deixado uma dádiva de O+. Ou a bolsa se rompeu ou seria imprestável. Mas ao voltar a apreciar a prosa excelente ocorreu-me perguntar quantos corações definham sangrando, suspensos por um fio. Uma coisa é certa não há dois iguais. Para se ajustarem um ao outro é preciso tempo. É preciso amar.
    Beijo, Maria, e que os cisnes prossigam com as bóias (à cautela).

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  6. "Afinal, um coração só pode partilhar-se com alguém que saiba como dois ritmos em descompasso são predispostos às mais assombrosas melodias."

    Olá Maria, sábias palavras:)

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  7. Então esta tese dos corações arrítmicos contraria a outra das canções, que o Tê escreveu e o Rui tão bem cantou :)
    Ainda bem que a Amor faz milagres!

    Beijo, Maria tu.
    🌹

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  8. Que lindo Maria Tu. É difícil isto dos corações descompassados mas possível, sim, quando predispostos.
    Beijinho

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  9. https://www.youtube.com/watch?v=7q5gZFR2dxs
    Feliz Ano para Ti e para os Teus, Maria !!!

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  10. Maria
    É muito bela, a mensagem com fortíssima carga poética: a determinada altura até esquecemos a ilustração, a transcendental obra que deveras nos toca!

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  11. É preciso ser sabedoria para criar uma melodia a partir do descompasso, a maior parte não sabe.
    ~CC~

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