sábado, dezembro 12, 2015

Paisagem

(Beatriz Guzman Velasquez)

Há algum tempo que não se dava ao tempo de ficar sentada junto a uma janela. É Sábado e não pode sair nem fazer nada de muito relevante a não ser ficar sentada. Fá-lo, por isso, à janela. 
Das que se rasgam nas paredes de sua casa, sabe bem que veria uma praça ampla com meninos a brincar sob a vigilância atenta dos pais, ouve-lhes as gargalhadas entrecortadas pelo chamamento de “Luísa!”, “Diogo!”, “Maria!”, de quando em vez. Há também pássaros, muitos, nas árvores que agora se arredondam de ouro e cobre. Há, até, por vezes, uma gaivota que, inexplicavelmente, vem molhar as patas cansadas no lago da praça distante do mar.
Desta, a que lhe calhou em sorte ao quarto dia de clausura, que até ao terceiro a vista era outra e até enchia a alma de sol, avistava um cemitério. Eram onze horas, não mais, quando se agitaram os corredores das sepulturas. Os vivos enxamearam o lugar dos mortos com casacos coloridos e flores. Observou-os, aos donos dos casacos portadores de flores, na azáfama do enfeite. Não pararam em introspectiva meditação, nada que se assemelhasse a um reviver de recordações, apenas procuravam a melhor posição na jarra para um ramo de feto, uma gerbera, uma hidranja. A espaços, afastavam-se para ver o efeito do arranjo, deitando alguns um olhar disfarçado à campa do vizinho, como que a conferir se estaria mais bonita.
Pelas doze horas, não mais, não restavam nenhuns donos de casacos coloridos a alegrar a janela, apenas hastes de flores e fetos em orgulhoso entrance a florir campas cinzentas.



(Frank Sinatra, cem anos)

36 comentários:

  1. Um janela para o mundo, como eu costumo dizer e como eu a compreendo :) Tudo que se passa lá fora, passa a ter um outro significado, suscitando curiosidade.

    Gosto muito do Frank, por variadas razões e uma em particular :)

    Bom resto de sábado e um beijinho

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  2. Gostei muito do teu texto, e da bonita homenagem que aqui deixaste à "Voz".
    Não me identifico com os locais de culto que a nossa cultura adotou para guardar os restos mortais dos seu defuntos. Como não faço o culto aos meus, dessa forma "imposta", gostei muito de ler o teu testemunho, que tão bem descreve os rituais floridos e também competitivos, por sinal.
    No meu entender é imperativo cuidar e acarinhar os vivos, e guardar no coração a memória dos que partiram. Depois da morte, eles já não precisam de cuidados. Acredito que a consciência de alguns precise de aliviar o peso. Por vezes os cemitérios também tem esse fim, purgar a alma de alguns vivos.
    Maria desculpa este meu desabafo, mas olha, este tema mexe com as minhas entranhas.
    Beijinho grande.

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    1. Sabes, Sandra, eu também não faço esse culto dos mortos e quero ser cremada. Não quero ficar em lugar nenhum ficando em todo o lado.

      Beijos, Sandra, e muito obrigada. :)

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  3. Apesar da clausura,o olhar atento e crítico faz o tempo passar mais depressa.
    Gostei muito do texto, da pintura e da Voz, pois claro! :)
    Maria, desejo que o seu Natal tenha alegria, amor, harmonia e muita paz.
    Feliz Natal!

    Um beijinho

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    1. Obrigada, ê!
      Um Natal cheio de Paz e alegria para ti, também.

      Beijos. :)

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  4. Todos temos olhares diferentes para a mesma paisagem. Não é a visão em si, mas o reflexo da consciência do olhar e a forma como estamos na sociedade que fazem as pequenas diferenças na visão do mesmo.

    Bom fim de semana,
    bjnhs

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  5. Lembraste-me, certo que sem querer
    A janela da minha casa. A janela e a varanda.
    Ambas davam para a mesma banda
    e tinham o mesmo para ver

    O muro branco, do outro lado da rua
    era o único obstáculo à lua

    que iluminava os jazigos

    Mesmo de fronte, havia um jazigo
    riquíssimo
    De granito, mármore e estatuetas
    ao lado de outro
    sóbrio, liso
    escurecido
    mas sempre repleto de flores

    Acho que quando me chegava
    a qualquer das janelas
    me chegava o perfume delas

    (acho que foi por ter crescido olhando o lugar dos mortos
    que hoje amo e estimo tanto os vivos)

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  6. paisagem original... é curioso que ontem vi um pedaço de um filme que se passava em Sortelha, e filmaram o cemitério que quase parecia pender no precipício do monte e era realmente belo. a beleza está tanto nas coisas como nos olhos de quem vê. bonito o teu texto.

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    1. A beleza está mesmo em cada olhar.
      Obrigada, Manel. :)

      Beijos.

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  7. O modo como se automatiza a dor e os rituais de homenagem, tão bem observados por essa espectadora, a partir de uma janela discreta :)
    Beijos, Maria.

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  8. Não são os partiram que morrem. Nós é que morremos para eles. Eles, continuam a viver dentro de nós.
    Bonita homenagem.

    Um beijinho, Maria, e um domingo feliz :)

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    1. Isso é que importa, a memória.
      Obrigada!

      Beijos, Miss Smile. :)

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  9. ~~~
    ~ Excelente ironia

    num texto de uma argúcia muito pertinente...

    ~~ Uma semana muito agradável e terna. ~~

    ~~~~~ Beijinho.
    ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~

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  10. Um texto muito bonito, uma descrição muito real, mas um tema que me arrepia. É preferível dar flores em vida, mas estános entranhado no sangue e nos valores... Beijinho Maria

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    1. Obrigada, GM! É bem melhor ter flores em vida!

      Beijos. :)

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  11. Eu gosto de observar. Quando está bom tempo, sento-me na esplanada a observar. :)

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    1. Observar é bom e as esplanadas são um bom lugar para o fazermos. :)

      Beijos, S*.

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  12. o caminho que percorremos,também inclui parar para ver. por vezes, observamos com mais acuidade.
    um beijinho,
    Mia

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  13. Até num cemitério se pode ver beleza. É a beleza dos que vivem e lembram, e homenageiam, os seus mortos, nas campas, nas flores...

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    1. Há uma certa plasticidade num cemitério.

      Beijos, Luísa. :)

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  14. Fez-me lembrar Rear WindoW de Hitchcock
    Boa semana

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  15. Bela homenagem, Maria!
    Gostei do teu texto, sobretudo por ser um contraponto ao que penso e faço em relação ao culto dos mortos. Não sigo esses rituais muito enraizados na nossa cultura.
    Beijos, Maria.

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    1. Obrigada, Isabel!
      Tal como eu disse acima, à Sandra, eu também não faço o culto dos mortos desta forma.

      Beijos. :)

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  16. Enerva-me supinamente a postura das minhas gentes: temos de lá pôr flores, para não falarem em nós!
    Já vi muitos agitares desses, participei em outros tantos, e não há vez nenhuma que não volte para casa terrivelmente irritada com tudo aquilo.

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    1. Tantas vezes se vai enfeitar por obrigaçãos social. Um absurdo!

      Beijos, Carla. :)

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  17. E miúda quando estava de férias, acompanhava com a minha prima as visitas do pai dela, médico na Província, muitas vezes, enquanto esperávamos, visitávamos o cemitério da aldeia e gostávamos muito de ver tudo sempre muito colorido...
    bjs

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    1. As crianças têm essa vantagem, a de vere a beleza em qualquer lugar, sem preconceitos.

      Beijos, papoila. :)

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  18. A cada um a sua janela. Dela pode ver o seu mundo ou o dos outros, consoante a perspectiva, mas há sempre uma contaminação desses dois mundos e, a páginas tantas, convergem num único.
    Depois, há os dias e os dias de reclusão com janelas, perspectivas, tangentes, campos de visão, luz, miragens, imagens, visões, estações, estados de espírito e vidros diferentes. Quase te percebi apesar do cabelo também diferente.
    E a reclusão tem intervalos a ritmos programados?
    Tens janelas lavadas, cristalinas, Maria, e vês aquilo que dizes e dizes aquilo que vês.
    Bj.

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    1. Digamos que tem ritmos, embora não programados. :)
      Obrigada, muito, Agostinho. Dás-me sempre muito alento com as tuas palavras.

      Beijinhos. :)

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