Há algum tempo que não se dava ao
tempo de ficar sentada junto a uma janela. É Sábado e não pode
sair nem fazer nada de muito relevante a não ser ficar sentada.
Fá-lo, por isso, à janela.
Das que se rasgam nas paredes de sua
casa, sabe bem que veria uma praça ampla com meninos a brincar sob a
vigilância atenta dos pais, ouve-lhes as gargalhadas entrecortadas pelo chamamento de “Luísa!”, “Diogo!”, “Maria!”, de
quando em vez. Há também pássaros, muitos, nas árvores que agora
se arredondam de ouro e cobre. Há, até, por vezes, uma
gaivota que, inexplicavelmente, vem molhar as patas cansadas no lago
da praça distante do mar.
Desta, a que lhe calhou em sorte ao
quarto dia de clausura, que até ao terceiro a vista era outra e até
enchia a alma de sol, avistava um cemitério. Eram onze
horas, não mais, quando se agitaram os corredores das sepulturas. Os
vivos enxamearam o lugar dos mortos com casacos coloridos e flores.
Observou-os, aos donos dos casacos portadores de flores, na azáfama
do enfeite. Não pararam em introspectiva meditação, nada que se
assemelhasse a um reviver de recordações, apenas procuravam a
melhor posição na jarra para um ramo de feto, uma gerbera, uma
hidranja. A espaços, afastavam-se para ver o efeito do arranjo,
deitando alguns um olhar disfarçado à campa do vizinho, como que a
conferir se estaria mais bonita.
Pelas doze horas,
não mais, não restavam nenhuns donos de casacos coloridos a alegrar
a janela, apenas hastes de flores e fetos em orgulhoso entrance a
florir campas cinzentas.
(Frank Sinatra, cem anos)
Um janela para o mundo, como eu costumo dizer e como eu a compreendo :) Tudo que se passa lá fora, passa a ter um outro significado, suscitando curiosidade.
ResponderEliminarGosto muito do Frank, por variadas razões e uma em particular :)
Bom resto de sábado e um beijinho
As janelas rasgam-nos o olhar.
EliminarBeijinhos, mz. :)
Gostei muito do teu texto, e da bonita homenagem que aqui deixaste à "Voz".
ResponderEliminarNão me identifico com os locais de culto que a nossa cultura adotou para guardar os restos mortais dos seu defuntos. Como não faço o culto aos meus, dessa forma "imposta", gostei muito de ler o teu testemunho, que tão bem descreve os rituais floridos e também competitivos, por sinal.
No meu entender é imperativo cuidar e acarinhar os vivos, e guardar no coração a memória dos que partiram. Depois da morte, eles já não precisam de cuidados. Acredito que a consciência de alguns precise de aliviar o peso. Por vezes os cemitérios também tem esse fim, purgar a alma de alguns vivos.
Maria desculpa este meu desabafo, mas olha, este tema mexe com as minhas entranhas.
Beijinho grande.
Sabes, Sandra, eu também não faço esse culto dos mortos e quero ser cremada. Não quero ficar em lugar nenhum ficando em todo o lado.
EliminarBeijos, Sandra, e muito obrigada. :)
Apesar da clausura,o olhar atento e crítico faz o tempo passar mais depressa.
ResponderEliminarGostei muito do texto, da pintura e da Voz, pois claro! :)
Maria, desejo que o seu Natal tenha alegria, amor, harmonia e muita paz.
Feliz Natal!
Um beijinho
Fê
Obrigada, ê!
EliminarUm Natal cheio de Paz e alegria para ti, também.
Beijos. :)
Todos temos olhares diferentes para a mesma paisagem. Não é a visão em si, mas o reflexo da consciência do olhar e a forma como estamos na sociedade que fazem as pequenas diferenças na visão do mesmo.
ResponderEliminarBom fim de semana,
bjnhs
Uma questão de perspectiva.
EliminarBeijos, mz. :)
Lembraste-me, certo que sem querer
ResponderEliminarA janela da minha casa. A janela e a varanda.
Ambas davam para a mesma banda
e tinham o mesmo para ver
O muro branco, do outro lado da rua
era o único obstáculo à lua
que iluminava os jazigos
Mesmo de fronte, havia um jazigo
riquíssimo
De granito, mármore e estatuetas
ao lado de outro
sóbrio, liso
escurecido
mas sempre repleto de flores
Acho que quando me chegava
a qualquer das janelas
me chegava o perfume delas
(acho que foi por ter crescido olhando o lugar dos mortos
que hoje amo e estimo tanto os vivos)
Eu também amo e estimo os vivos.
EliminarBeijos, Rogério. :)
paisagem original... é curioso que ontem vi um pedaço de um filme que se passava em Sortelha, e filmaram o cemitério que quase parecia pender no precipício do monte e era realmente belo. a beleza está tanto nas coisas como nos olhos de quem vê. bonito o teu texto.
ResponderEliminarA beleza está mesmo em cada olhar.
EliminarObrigada, Manel. :)
Beijos.
O modo como se automatiza a dor e os rituais de homenagem, tão bem observados por essa espectadora, a partir de uma janela discreta :)
ResponderEliminarBeijos, Maria.
Obrigada, Linda azul, muito. :)
EliminarBeijos. :)
Não são os partiram que morrem. Nós é que morremos para eles. Eles, continuam a viver dentro de nós.
ResponderEliminarBonita homenagem.
Um beijinho, Maria, e um domingo feliz :)
Isso é que importa, a memória.
EliminarObrigada!
Beijos, Miss Smile. :)
~~~
ResponderEliminar~ Excelente ironia
num texto de uma argúcia muito pertinente...
~~ Uma semana muito agradável e terna. ~~
~~~~~ Beijinho.
~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~
Viste nas entrelinhas...
EliminarBeijos, Majo. :)
Um texto muito bonito, uma descrição muito real, mas um tema que me arrepia. É preferível dar flores em vida, mas estános entranhado no sangue e nos valores... Beijinho Maria
ResponderEliminarObrigada, GM! É bem melhor ter flores em vida!
EliminarBeijos. :)
Eu gosto de observar. Quando está bom tempo, sento-me na esplanada a observar. :)
ResponderEliminarObservar é bom e as esplanadas são um bom lugar para o fazermos. :)
EliminarBeijos, S*.
o caminho que percorremos,também inclui parar para ver. por vezes, observamos com mais acuidade.
ResponderEliminarum beijinho,
Mia
Observar faz-nos percebermo-nos melhor.
EliminarBeijos, Mia. :)
Até num cemitério se pode ver beleza. É a beleza dos que vivem e lembram, e homenageiam, os seus mortos, nas campas, nas flores...
ResponderEliminarHá uma certa plasticidade num cemitério.
EliminarBeijos, Luísa. :)
Fez-me lembrar Rear WindoW de Hitchcock
ResponderEliminarBoa semana
Só não houve um crime.
EliminarBeijos, Pedro. :)
Bela homenagem, Maria!
ResponderEliminarGostei do teu texto, sobretudo por ser um contraponto ao que penso e faço em relação ao culto dos mortos. Não sigo esses rituais muito enraizados na nossa cultura.
Beijos, Maria.
Obrigada, Isabel!
EliminarTal como eu disse acima, à Sandra, eu também não faço o culto dos mortos desta forma.
Beijos. :)
Enerva-me supinamente a postura das minhas gentes: temos de lá pôr flores, para não falarem em nós!
ResponderEliminarJá vi muitos agitares desses, participei em outros tantos, e não há vez nenhuma que não volte para casa terrivelmente irritada com tudo aquilo.
Tantas vezes se vai enfeitar por obrigaçãos social. Um absurdo!
EliminarBeijos, Carla. :)
E miúda quando estava de férias, acompanhava com a minha prima as visitas do pai dela, médico na Província, muitas vezes, enquanto esperávamos, visitávamos o cemitério da aldeia e gostávamos muito de ver tudo sempre muito colorido...
ResponderEliminarbjs
As crianças têm essa vantagem, a de vere a beleza em qualquer lugar, sem preconceitos.
EliminarBeijos, papoila. :)
A cada um a sua janela. Dela pode ver o seu mundo ou o dos outros, consoante a perspectiva, mas há sempre uma contaminação desses dois mundos e, a páginas tantas, convergem num único.
ResponderEliminarDepois, há os dias e os dias de reclusão com janelas, perspectivas, tangentes, campos de visão, luz, miragens, imagens, visões, estações, estados de espírito e vidros diferentes. Quase te percebi apesar do cabelo também diferente.
E a reclusão tem intervalos a ritmos programados?
Tens janelas lavadas, cristalinas, Maria, e vês aquilo que dizes e dizes aquilo que vês.
Bj.
Digamos que tem ritmos, embora não programados. :)
EliminarObrigada, muito, Agostinho. Dás-me sempre muito alento com as tuas palavras.
Beijinhos. :)