domingo, dezembro 27, 2015

Conto triste de Natal

(imagem daqui)

Manuel era invulgarmente irrequieto. Parecia sempre que a alma traquina não lhe cabia no corpo franzino e aqueles não eram tempos em que aos meninos se permitia ir além de rígidas regras. Era logo pela manhã, bem cedo como convinha, que a mãe o empurrava porta fora, sapatos e casaco herdados do irmão a pouco agasalhar pés e tronco, estômago forrado com migas de broa e leite, a caminho da escola. Ora, Manuel não gostava particularmente daquela sala com carteiras de madeira onde se encravavam tinteiros de porcelana branca com uma pena. Ah, a pena! Que martírio usá-la sem sujar o papel! As mãos doridas do frio e das palmatoadas da professora, mulher severa e com uma urgência enorme em ter os meninos das quatro classes domesticados, a papaguear o "a,b,c" e a somar, subtrair e dividir. Talvez por isso ele ficava de olhar perdido a sonhar com os campos verdes onde corria livremente e os jogos de futebol com a bola de trapos que fizera dos restos das fazendas que a mãe usava para costurar os vestidos das irmãs e os aventais da Luzia. A Luzia era uma mulher rubicunda e bondosa que cozinhava qualquer coisa com tanto amor que fosse o que fosse que saía dos seus tachos era um manjar. Escusado será dizer que muitos eram os dias em que os sonhos o faziam desviar-se do caminho para as aulas e ficar na companhia do Sr. Arlindo e do seu rebanho de ovelhas, ou no quintal da Sra. Joaquina a marcar golos numa baliza feita de pedras do caminho juntamente com os outros gazeteiros. Nenhuma destas faltas passava impune e era a mãe que o recebia de cinto em riste para umas valentes vergastadas. "Hás-de aprender a não me faltar ao respeito!", gritava. E Manuel nunca entendia como é que não ir à escola significava faltar ao respeito à mãe. "Ninguém dirá que eu não sei educar os meus filhos, ouviste, meu fedelho?". Estas palavras doíam-lhe tanto como o cinto a cortar-lhe a pele das pernas. 
No ano em que fazia oito anos não passara para a 2.ª classe. As mãos andavam sempre inchadas dos encontros com a palmatória e as pernas marcadas de vermelho pelo couro do cinto. Ainda assim, era no campo que se refugiava. 
Chegado o Natal, a casa tinha o cheiro dos doces da Luzia e era ela que lhe passava a mão perfumada de canela no cabelo e murmurava "Meu menino. Meu menino.", fazendo-o sorrir. Era costume deixarem um sapato junto à lareira no dia 24 de Dezembro. Iam-se deitar e, logo pela manhãzinha, iam espreitar o que o Menino Jesus lá deixara. Nunca era muito. Um carrinho de madeira, um pião, uns rebuçados. Nesse ano, procedeu de igual forma, o coração em alvoroço pela ansiedade. Ao acordar, ainda mal o sol se levantara, correu para o sapato. Manuel não entendeu a razão pela qual nele só encontrou uma dúzia de castanhas. O olhar duro da mãe não lhe deixou margem para perguntas. Pegou nas castanhas, atirou-as para a lareira, e fugiu porta fora à procura do Sr. Arlindo. 

Cresceu, o Manuel, numa dureza só. Fez a 4.ª classe já a trabalhar. Deu muitos presentes de Natal mas nunca teve prazer em recebê-los. Envelheceu acreditando que a mãe nunca o amou. Amou muito mas pouco foi capaz de o mostrar.


44 comentários:

  1. Caramba, Maria! É difícil controlar a comoção! Um conto melancólico mas lindo de doer.
    Beijinho e bom ano!

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    1. Há beleza nas lágrimas, ainda que se não entenda o que lhes dá origem.

      Beijinhos, Jorge, e um bom 2016! :)

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  2. Querida Maria Eu,
    Que estranha forma de amar.
    Um beijo,
    Outro Ente.

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    1. Tão estranha que não parece amor.

      Beijinhos, caro Ente, e um feliz 2016! :)

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  3. Que pena as pessoas não serem capazes de dizer o quanto amam...
    Custa-me aceitar, custa-me compreender.
    Um bj Maria.

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  4. Maria, que história triste mas tantas vezes verdadeira. Não será amar também perdoar, abraçar, mesmo enquanto se educa? Um beijinho

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    1. Outros tempos, de muita dureza e pouca educação.

      Beijos, GM, e um bom 2016! :)

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  5. É deveras trágico e perturbador quando chegamos à conclusão que na melancolia também reside beleza.

    Beijo

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    1. Uma beleza magoada...

      Beijinhos, Eros, e um feliz 2016! :)

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  6. A dificuldade em comunicar é algo que todos devemos conseguir ultrapassar. Dizer que amamos é muito importante, para quem a frase é dirigida ou para nós mesmos. Tantos Manéis que hão por esse país fora !

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    1. Um gesto ou uma palavra de amor fazem tanta diferença...

      Beijinhos, Ricardo, e um bom 2016! :)

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  7. Conheci o Manuel
    Num dia em que gazetei também
    fizemos um papagaio de papel
    e ficámos, depois de o lançar
    tempos sem fim a vê-lo esvoaçar
    no ar

    Pouco falámos
    mas quando nos despedimos
    ele me perguntou
    «Gostas da tua mãe?»

    Só agora percebi a razão de tal pergunta

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    1. Marcas de um tempo duro, Rogério.

      Beijinhos e um bom 2016! :)

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  8. Como era habitual nesses tempos. Tempos duros, quase selvagens. Lembro-me bem...

    Muito bonito; muito bem escrito. Beijinhos.

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    1. Haja memória, para o bem e para o mal.

      Muito obrigada, Graça!

      Beijos e um bom 2016! :)

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  9. sem saber falei na pena :) terrivelmente triste caríssima Tutu, felizes os que sabem que são amados... beijos

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    1. Felizes, sim, os que se sabem amados, Stormy!

      Beijinhos e um feliz 2016! :)

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  10. Gostei muito da história e fez-me pensar nas histórias que conta o meu pai da sua infância.
    um beijinho
    Gábi

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    1. É a marca da infâncias dos nossos pais, Gábi. Dura!

      Beijos e um bom 2016! :)

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  11. Tantas vezes o amor não é verbalizado, até demonstrado.
    Mas não deixa de estar lá e de ser forte.
    Tão forte que obriga a dizer não.
    Boa semana

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    1. Dizer não é preciso. Bater e ferir, nunca!

      Beijinhos, Pedro, e um bom 2016! :)

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  12. Tão bonito, Maria. Nos tempos que correm é trágico não ser capaz de se mostrar o quanto se ama. E acontece :)

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  13. Que as pessoas tenham sempre a capacidade de amar apesar do seu passado.
    Beijos Maria Eu

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    1. Seria bom que assim fosse sempre!

      Beijinhos, Urso Misha, e um bom 2016! :)

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  14. Sou do tempo em que o castigo das reguadas na escola primária estava na parte final…, no entanto ainda levei bastantes devido a ter o chamado "bicho-carpinteiro" e não parar quieto. Esse assunto das reguadas sempre foi polémico, mas também algo que foi sempre apoiado por muitos Pais que achavam que era a melhor forma de impor disciplina numa criança.
    Continuei rebelde e irrequieto, mas bastava um ou dois avisos e parava logo para que não passássemos por aquilo de novo. Era um castigo por isso não muito eficaz, e cruel nessa nossa fase de crescimento.
    Como em tudo, o pior está na pessoa que aplica o castigo, é isso que o pode tornar pouco ou muito cruel, é triste actualmente haver ainda muitos “Maneis” talvez sem reguadas na escola, mas esperando por elas em casa.

    Maria, que em 2016 realize tudo o que sonhou e que ainda não realizou!:)

    Feliz Ano 2016 ;)

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    1. A defesa dos castigos "físicos" arrepia-me. Talvez porque tenho presente os Manueis deste mundo.

      Beijinhos, caro Legionário, e um excelente 2016! :)

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  15. Os tempos eram outros. A verbalização e demonstração do amor eram considerados sinais de fraqueza. Provavelmente, a mãe passou pelo mesmo e comeu também do pão que o diabo amassou. Mas, como diz o Manel, felizes aqueles que sabem que são amados.

    Um beijinho, querida Maria

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    1. Sim, a mãe também não teve grandes afagos. Ainda assim...dói!

      Beijos, doce Miss Smile, e um excelente 2016! :)

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  16. O amor não tinha, por esses tempos, espaço para se fazer sentir. Ficava tudo por dizer, e o que se calava, nem sempre se pressentia num olhar mais macio. Dura realidade.
    Beijinho, Maria.

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    1. Matava-se o amor de tanto o renegar.

      Beijos, Mia, e um bom 2016! :)

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  17. Doeu-me ler este teu texto, demasiado triste. Também hoje há pessoas que não conseguem demonstrar o amor e na árvore de Natal é só presentes.

    Um beijo, Maria.

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    1. Este menino existe, Castiel, e tem pouco jeito para mostrar que ama.

      Beijos, querida, e um bom 2016! :)

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  18. ~~~
    Um conto emocionante - rudes e ásperos tempos!

    ~ Beijinho, ME. ~
    ~~~~~~~~~~~~~

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  19. Demasiado triste, dói ao ler.
    Um Feliz Ano Novo.
    Beijo

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    1. Triste, sim, como o menino que cresceu sem conseguir dizer amo-te.

      Bom 2016, Cristina, e obrigada pelas palavras. :)

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  20. Bonito conto! a recordar um tempo excessivo de sacrifícios sem sentido. E, ainda hoje, com cenários um pouco diferentes, continuam a observar-se os mesmos comportamentos.
    “De pequenino se torce o pepino” era a regra comum na educação de gerações de crianças. E tanta gente que nunca percebeu o sentido do dito aplicando a “receita” a esmo independentemente das situações e do carácter das crianças. E, para cúmulo, nem espaço havia para se mostrarem afectos, como muito bem refere Maria no último parágrafo.

    Um bom ano 2016!

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    1. Tempos de desamor em que tudo era cinzento, menos os sonhos das crianças.
      (obrigada)

      Beijinhos, Agostinho e um excelente 2016! :)

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  21. Quando, num tempo de (algumas) facilidades, se discute a melhor forma de burilar o diamante em bruto que é uma criança, esquecemo-nos de tempos em que, em certos meios, a sobrevivência convivia com a bestialidade.
    Gostei muito do conto, Maria.

    Um beijinho :)

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    1. Parece que não conseguimos o meio-termo. Mas esta dureza dói.

      Beijinhos, AC, e obrigada. :)

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