terça-feira, janeiro 17, 2017

Era uma vez uma buganvília



Ela e a buganvília  tinham crescido par a par. Teria uns três anos quando a mãe trouxe aquele arbusto pequenino e a chamou para a ajudar a plantá-lo ao lado das escadas da varanda. Conseguia recordar a sensação estranha das mãos na terra húmida, orientadas pelas da mãe. 
"-Devagar, Clarinha! Vamos carregar mais um bocadinho junto ao pé. Olha que linda, vês?"
"-Assim, mãe? As mãos 'stão sujas! Não faz mal?"
Sentava-se ao lado dela, no primeiro degrau, com a boneca Marta, o urso Tino e os tachos e panelas de alumínio comprados na última romaria, e ali se deixava ficar, conversando, como se fossem duas amigas.
E assim foi subindo nas escadas, à medida que a buganvília trepava, espalhando sombra e flores rosadas. A Marta e o Tino foram ficando na prateleira, sendo substituídos pelos livros delicodoces de Max du Veuzit (Clara sabe, hoje, que Max era, afinal, pseudónimo de  Alphonsine Vavasseur-Archer Simonete, num tempo em que às mulheres não ficava bem escrever romances), retirados da poeira do sótão e em cujas páginas havia sempre um amor difícil mas que terminava bem. 
O arbusto era já bastante forte quando Eça de Queirós apareceu em casa, numa colecção novinha, encadernada a verde, com letras douradas. Foi um amor tão grande, mas tão grande, que não leu mais nada durante aquelas féria de Verão. Chegou, até, a ler passagens de A Relíquia em voz alta e a emocionar-se até às lágrimas com a história da morte do bebé de Amélia n'O Crime do Padre Amaro (mal sabia que iria enjoar-se dessa história quando a tivesse que estudar e decorar as versões que dela  escrevera Eça até à final, apurada para não ferir tanto a susceptibilidade dos leitores, retirando gradualmente qualquer sopro de vida à criança no momento do afogamento). Leitura pela rama e ingénua mas que a fez entrar num outro mundo, onde as letras não vinham apenas com estruturas lineares ou histórias de amor lamechas. 
Uma buganvília sabida, era o que era, aquela que se içava pela varanda fora, torneando-a em cachos floridos, servindo de refúgio a pássaros, abelhas, borboletas, lagartixas e, imagine-se, a meninas.



11 comentários:

  1. Uma flor que desperta a imaginação e solta a criatividade.
    Maravilha!

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  2. Um cenário colorido para acolher qualquer leitura, alegre ou triste que seja.

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  3. A Buganvilia, desperta sorrisos de deslumbramento.
    bjs

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  4. Que delicia de memória, Maria. A tua infância foi maravilhosa.
    Beijo com carinho.

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  5. Gostei muito, Maria Eu. Muito bem contado este crescimento a par, a fase das bonecas e a cronologia das leituras !
    :)

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  6. Pétalas de cor, pétalas de vida. As buganvílias, tal como as crianças crescem imenso. Beijinho Maria Tu :)

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  7. tive a sorte de levar com A Relíquia por obrigação... se todas as obrigações fossem assim, nã havia espaço para as bungavílias!
    fantástico, como sempre. beijo Tutu

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  8. Bom dia, guardar para sempre as boas memorias da infância faz-nos bem.
    AG

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  9. As buganvílias crescem e nunca sobram em flor. Já a Clarinha largou as bonecas e foi podada. Para não parecer mal, ficou Clara, só, a encantadora e encantada às voltas de capas verdes, a princípio, de todas as cores, depois.
    Só a mim não me puseram a tesoura e cresci como quis?

    Gosto sempre deste tom, Maria.
    BFS e um BJ.

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  10. Essa buganvília deve ter muitas histórias para contar. :)

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