quinta-feira, abril 04, 2019

Tempo de não tardar

(Amedeo Modigliani)

Maria Antónia vivera muitos anos, já. Fora menina, sem tempo para o ser de sua mãe ou de seu pai, na pressa de a fazerem crescida. "Uma mulherzinha, a nossa Maria Antónia!", diziam os pais, orgulhosos. Assim, aprendeu a bordar, a costurar, a cozinhar, bem como todas as artes de bem governar uma casa, a par com a leitura de romances de final feliz onde os amados não se aventuravam para além de um beijo casto e superficial nos lábios. Mal ganhara corpo, logo lhe destinaram namoro. "Mesmo bom rapaz, o Joaquim! Reparaste, Maria Antónia, como é sensato e trabalhador?" 
Joaquim passou a visita da casa, trazia chocolates e palavras sensatas, como ele. Os chocolates, repartia-os Maria Antónia com a família. As palavras em nada a entusiasmavam, ia-as ouvindo e esquecendo enquanto a doçura do chocolate a fazia acreditar que sim, que aquele era o homem ideal.
Casaram em pouco tempo. No lar, ela cuidava que tudo estivesse como ele gostava, primeiro, dos filhos que vieram, depois, e dela, nunca.
Morreram-lhe os pais. Casaram-se-lhe os filhos. Joaquim tardava fora de casa. Não que lhe estranhasse as demoras, mas agora estava só.
Dia após dia, começou a reparar no cabelo menos alinhado, adoptando um novo penteado. Ao ver-se ao espelho, pensou que podia usar uma sombra rosa nos olhos, leve, quem sabe um pouco de blush?
Joaquim chegava, beijava-a de raspão na face, sem notar as mudanças. Nem quando comprou um vestido florido, tão diverso do guarda roupa de cores escuras que o seu corpo habitara desde que se lembrava.
Foi num dia soalheiro que Joaquim entrou, tarde como lhe era hábito, estavam as janelas da casa abertas de par em par. Procurou a mulher sem sobressalto. Certamente apurava o jantar. Mas, na cozinha, não havia sinal dela. Chamou-a, "Antónia! Oh, Antónia!"
Só quando pendurava o casaco no cabide viu o bilhete.

Joaquim,

Cansei-me de sensatez! Podes, de hoje em diante, tardar o quanto queiras. Eu, Maria Antónia, deixei de tardar para mim.





(Massive Attack feat. Hope Sandoval - ‘The Spoils’)

33 comentários:

  1. há uma musiquinha do palma que gosto muito, passos em volta

    acabo com "abriu a janela, e voou"

    e pronto :)

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    1. E o que eu gosto dessa música! Assenta aqui muito bem!

      Beijinhos, Luís :)

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  2. Seria bom, que actualmente muitas "Maria Antónia" fizessem exactamente o que essa Maria fez, em lugar de engolirem sapos da pessoa com quem estão casadas.

    Bom fim-de semana, Maria:)

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  3. Foi o que fez de melhor a Maria Antónia. Tanta sensatez já era sensaboria!
    :-*
    Bom fim de semana!

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  4. Fez muito bem a Maria Antónia, como quem teve a ideia de juntar massive attack com hope sandoval que se juntaram para estar aqui neste post.

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    1. Handsomed.74, bons olhos te vejam! Esta música resulta muito bem, não é?

      Beijinhos :)

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  5. Mais vale tarde que nunca.
    Mais vale antes que tarde.
    Mais vale nunca que gostar de chocolates.
    Não é, Maria?,
    para que nunca haja "mau-maria".

    Beijo.

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    1. Ora nem mais, Agostinho! :)
      Mais vale um "bem-maria"! ;)

      Beijinhos

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  6. Fez bem. Nunca é tarde para se olhar para si próprio...

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  7. Curiosamente lembrei o fado "Não venhas tarde".
    Boa semana

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  8. Como gostei desta "Maria Antónia"! Um conto muito bem escrito e com uma Mulher inteira…
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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  9. Fez muito bem,a Maria Antónia. :)

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  10. E mais vale tarde do que nunca...
    Magnífico conto, gostei imenso.
    Maria, um bom fim de semana.
    Beijo.

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    1. Nunca é tarde para não tardar!
      Obrigada, Jaime.

      Beijinhos :)

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  11. Joaquim nunca reparou que a Maria Antónia tinha asas...

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  12. Adorei o Teu Conto

    Convido a Conhecer Meus Poemas

    Beijo

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  13. Boa Páscoa para ti, também, KK!

    Beijo :)

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  14. Obrigada, João! Voou num bilhete...

    Beijinhos :)

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  15. :) Há raparigas mesmo do caraças!!!

    Beijo, KK :)

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  16. Pois... Tantas Marias Antónias sem essa coragem, mesmo ao fim de muitos anos!

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