segunda-feira, outubro 24, 2016

Dormir, talvez nem sequer sonhar

(Francine Van Hove)

Não venhas sentar-te à minha frente, nem a meu lado;
        Não venhas falar, nem sorrir.
Estou cansado de tudo, estou cansado
        E quero só dormir.
Dormir até acordado, sonhando
        Ou até sem sonhar,
Mas envolto num vago abandono brando
        A não ter que pensar.
Nunca soube querer, nunca soube sentir, até
        Pensar não foi certo em mim.
Deitei fora entre ortigas o que era a minha fé,
        Escrevi numa página em branco, «Fim».
As princesas incógnitas ficaram desconhecidas,
        Os tronos prometidos não tiveram carpinteiro
Acumulei em mim um milhão difuso de vidas,
        Mas nunca encontrei parceiro.
Por isso, se vieres, não te sentes a meu lado, nem fales,
        Só quero dormir, uma morte que seja
Uma coisa que me não rale nem com que tu te rales —
        Que ninguém deseja nem não deseja.
Pus o meu Deus no prego. Embrulhei em papel pardo
        As esperanças e ambições que tive,
E hoje sou apenas um suicídio tardo,
        Um desejo de dormir que ainda vive.
Mas dormir a valer, sem dignificação nenhuma,
        Como um barco abandonado,
Que naufraga sozinho entre as trevas e a bruma
        Sem se lhe saber o passado.
E o comandante do navio que segue deveras
        Entrevê na distância do mar
O fim do último representante das galeras,
        Que não sabia nadar.

Fernando Pessoa





Inadvertidamente, entra-lhe o cansaço porta adentro. Não aquele cansaço morno depois das tarefas diárias, mas uma dormência que vem de dentro para fora, um desejo enorme de fechar os olhos às minudências da vida, às horas passadas numa voragem que esgota o corpo e a alma. Apetece-lhe não ser mais ombro e ser ela a encostar a cabeça e repousar.

46 comentários:

  1. Great post.
    I LOVE this music video -- such great photography.
    Have a great week, Maria.
    Here's an "apple butter kiss" 🍎🍎❤️❤️
    XX

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  2. O Pessoa é fantástico:)
    Mas eu sou suspeito.
    Belíssimo blog Maria.

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  3. Boa semana, Maria.
    Beijinho

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    1. Obrigada, Observador! Uma excelente semana para ti, também!

      Beijinhos :)

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  4. Quando damos demais isto acontece.
    Maria, identifiquei-me com toda a sua mensagem, desde a magnífica tela, passando pelo soberbo poema de Pessoa, até essa música que adoro, culminando no desabafo final.
    Um beijinho grato por esta maravilha

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  5. Confesso que ultimamente ando com um cansaço de tudo...ou será desânimo?
    Boa semana, Maria:)

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  6. Estás cansada, é claro,
    Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansada.»

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  7. Sim, sonhar também cansa, Maria.
    Gostei muito deste post.
    Beijos

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  8. Um trabalho muito bom, Maria. A partir da imagem do desalento, depois das vidraças quebradas(?): um estado de alma perceptível mas, algumas vezes, indizível.
    Dizia-me um amigo cardiologista há uns anos, ele com uns 30 anos a mais do que eu, a propósito da velhice, do desespero e da desistência da vida: "Agostinho, quando os velhos sentados nos bancos de jardim deixam de olhar para as pernas das garotas, é seguro, passado alguns meses morrem. Desistem da vida". E o grave é haver gente nova que se cansa, desiste.

    E o Pessoa, a música e o teu texto: excelente!

    Mereces um bj.

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    1. Cansada, sim. Desistir? Nunca!

      Obrigada, Agostinho! Muito!

      Beijinhos :)

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  9. Por vezes chamo-lhe um cansaço antigo...
    Beijo Maria, com saudade de te ler e do meu canto que anda também cansado como eu.
    Quem sabe volto ao ativo um dia.:))

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    1. É um mal comum, este cansaço que nos limita as forças...

      Beijo grande, miúda! :)

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  10. Maria, belíssima publicação, e não é pelo facto de citares o grande Fernando Pessoa, mas porque as tuas palavras e o teu sentir casam muito bem com o poema dele, por ti escolhido.
    Fica um beijo Maria, e ao que vejo, este estado de cansaço mostra-se generalizado...

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    1. Há-de passar, não há-de, Sandra?

      Beijos reconfortante :)

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  11. Maria, belas quadras de Fernando Pessoa, bjs amiga

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  12. Certos dias, sinto-o também. Esse cansaço.

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  13. Encosta a cabeça Maria, descansa um pouco que logo te sentirás renovada. Beijinho

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  14. Hoje estou com essa disposição.
    Estupor de humidade!

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    1. Deve ser este calor abafado que por aqui se faz sentir, também.

      Beijinhos, Pedro :)

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  15. Foi tão bom passar por aqui! Li Fernando Pessoa, ouvi a música de Rodrigo Leão com um vídeo muito bom. Obrigada pelo momento.
    Uma boa semana.
    Beijos.

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    1. Obrigada, Graça, pelas tuas sempre amáveis palavras!

      Uma óptima semana para ti, também!

      Beijos :)

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  16. Um amigo doce, um livro de poesia, um amor secreto, uma chávena de chá (eu sou suspeita, eu sei), uma fotografia da infância, uma gaivota que passa, uma brisa que nos acaricia um desejo, um Nocturno de Chopin, uma palavra que nos lembra o cheiro das maçãs - sítios onde podemos pousar a cabeça. És uma pessoa bonita, Maria, poupa o teu coração.

    Beijinhos

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    1. Tentei seguir o teu conselho. Começa a resultar...
      Obrigada, doce Miss Smile!

      Beijos :)

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  17. Olhe
    ela que escolha
    ombro ou colo
    (ou será que apenas deseja
    apenas uma orelha
    que lhe escute
    o desabafo
    desse tão grande cansaço?)

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  18. ombro desgastado, talvez demasiado tombado.
    beijo, Maria.

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  19. por que nos cansamos? aos deuses é dada a eternidade, a nós a esperança, até o dia que enxergamos ao mesmo, ao de sempre.

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    1. Não somos Deuses. Talvez queiramos sê-lo e nos cansemos de tentar.

      Boa noite, anónimo(a) :)

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  20. Maria,eu simpatizo contigo;)

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  21. este é o meu ombro, tenho outro do outro lado se precisares :)

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    1. Pouso, então, a minha cabeça, Stormy. Obrigada!

      Beijocas :)

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