Era no Dia de Todos os Santos que a família se reunia. Primeiro à volta da mesa, onde o peru era rei e Joana se arrepiava com a visão ávida dos tios, que atacavam as travessas com as mãos e terminavam a refeição com o queixo a pingar gordura, os dentes roxos do vinho tinto e a camisa com nódoas de várias cores, quando não com bocados de arroz ou leite-creme em versão minimalista e seca.
Enquanto os homens se arrastavam até à mesa de pedra do quintal para fumarem e acabarem com a garrafa de bagaço e as crianças jogavam ao esconde-esconde ou à macaca, as mulheres afadigavam-se para arrumarem a cozinha. No dia anterior, a elas tinha cabido a ida ao cemitério, levar os baldes, os materiais de limpeza e as flores, para as “suas” campas ficarem a brilhar e os arranjos dignos de inveja.
Juntavam-se, então, ao portão da
quinta e iam, em passo lento, até ao cemitério. Uma pequena feira de vaidades,
essa visita. Sussurravam-se críticas e elogios, cumprimentavam-se aqueles que
só nesse dia se deslocavam à aldeia, enchiam-se os caminhos esconsos de “filhos
Pródigos”.
Joana nunca gostara dessa data. Os
primos mais velhos, João Maria e Manuel António, olhavam-na do alto dos seus 15
e 17 anos vividos no Porto, como se fossem príncipes e ela encolhia-se no
vestido novo, soquetes brancas e sapatos de verniz devidos ao Domingo, apesar
de os 14 anos já lhe permitirem umas meias de vidro e uns sapatos de meio
tacão. Vingava-se a atiçar-lhes o cão e a meter-lhes minhocas pela roupa
dentro!
Havia, porém, uma coisa que a
incomodava ainda mais do que a atitude altiva dos primos, o tempo passado junto
às campas. Jurava que os mortos se agitavam, falavam entre si e, no caso das
crianças falecidas, até choravam, despertadas do seu sono.
Quando eu morrer, pensou Joana, quero ser feita em cinza. Assim, estarei em todos os lugares sem estar em lugar nenhum.
Tudo isso acabou com a chegada da Pandemia. Vivi esses tempos de romaria aos cemitérios em dia de todos os Santos. Espero ainda vir a viver tempos análogos mas... nunca mais serão iguais ao que eram. Atualmente as pessoas de máscara nem se conhecem umas às outras. Texto muito assertivo que gostei de ler.
ResponderEliminarGostei muito da música.
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Cumprimentos
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Pensamentos e Devaneios Poéticos
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Confesso que nunca fui de prestar culto aos mortos desta forma. Mas é, muitas vez4s, um pretexto para um encontro familiar.
EliminarObrigada, Ryk@rdo. 🙂
Bonita esta publicação Maria, a imagem, o texto e a música !!!
ResponderEliminarMuito obrigada, Ricardo!
EliminarBeijinho 🙂
muito bom... gostei e esse desejo da cinza foi meu durante muito tempo, mas agora já não quero saber :)
ResponderEliminarQuero sê-lo.
EliminarBeijinho, Manel das Tempestades. 🙂
Penso como a Joana. Oxalá me façam a vontade...
ResponderEliminarNunca compreendi essa competição entre campas e jazigos, como que a perpetuar as diferenças entre ricos e pobres, entre palácios e barracas, embora digam que depois da morte somos todos iguais...
Bela ilustração do Rockwell.
Boa semana, Maria.
🌼
Tal e qual, Maria.
EliminarEu também nunca fui dada a visitar os "meus" mortos nesse dia.Prefiro revê-los nas minhas lembranças.
Beijo, Maria, e uma semana soalheira. 🌹
A Joana tem razão. É sempre melhor virarmos cinza. Narrativa excelente, que se lê com muito prazer.
ResponderEliminarUma boa semana com muita saúde.
Um beijo.
Concordo, Graça!
EliminarAgradeço as palavras gentis.
Haja muita Luz nos seus dias!
Beijo ⚘
Quando era garoto odiava o dia precisamente por isso - visita a cemitérios.
ResponderEliminarBjs, boa semana
Nada próprio para crianças, esse costume.
EliminarBeijinho, Pedro, e uma óptima semana. 🙂
É curioso que também tenho andado a pensar na morte. Ando a ruminar desenhos e conceitos que os sustentem. De facto a morte é boa nesse sentido que é Verónica. Verónica fica com o sudário a morte com o cadáver. Mas não queria que se parecêsse com uma valquíria.Penso mais numa figura maternal. Desculpa o solilóquio tenho é de desenhar. O Mancas existiu e foi meu tioavô paterno. Tinha uma horta no Topo do Parque Eduardo VII no local em que o Ribeiro Teles pensou estender o corredor verde até Monsanto.
ResponderEliminarAcho que é inevitável regressarmos recorrentemente ao tema da morte. Reconheço-lhe esse lado com um regaço onde nos deitamos no sono final.
EliminarBoas, essas lembranças!
Beijinho, Luís, e bons desenhos. 🙂
Bela prosa que parece integrar um pedaço da nossa História mais recente; retrata fielmente algumas cenas "trágico-cómicas", típicas dalgumas famílias que professavam a única religião então permitida e autorizada: a religião católica que marcou, e continua a marcar, as nossa vidas!
ResponderEliminarAo ouvir a música fui mesmo transportado para o Além!
Grata pelas suas palavras, Petrus.
ResponderEliminarSem dúvida que, queiramos ou não, a nossa matriz é católica e deixa marcas indeléveis.
Beijinho 🙂