Ondina vivera já muitos anos. Passava dos noventa, agora. Tinha sido jovem aprendiz de costura na mestra da aldeia, cortando, cosendo e bordando o enxoval. Ainda nos verdes vinte, João, rapaz garboso e bom de palavra, tratou de conquistá-la e levá-la ao altar. Logo se afadigou na lide da casa, em dar à luz duas filhas (que difíceis foram os partos, naquela casa apertada) e em educá-las nos preceitos antigos.
A vida correra sem
grandes sobressaltos, mas também sem a alegria que imaginara enquanto bordava
os lençóis de linho. João trabalhava de manhã à noite e, ainda que o garbo
estivesse lá, as palavras foram morrendo aos poucos.
Recordava-o num misto de
ternura e de raiva. Amara-o, é certo, mas mantivera escondida a revolta de se
ter diminuído mais de sessenta anos, de nunca ter tido a coragem de ripostar
quando lhe pedia palavras ternas e ele se ria dela.
Agora, no caminho da cama
para a cadeira de rodas, deixava-se levar, enquanto jurava que, doravante,
teria 20 anos e regressaria à costura.
Tantas Ondina que ainda existem e sobrevivem diminuídas.
ResponderEliminarBjs
Infelizmente, Pedro.
EliminarBeijinho
A vida não se repete
ResponderEliminarBj
Nem se prevê.
EliminarBeijinho, MA
Eu que há mais do que décadas aqui não vinha!? Quem perdeu fui eu. Vou recuar, recuperar, respirar este ar.Em grande forma estás, tu, que engendras histórias com um perfume especial, a chamar um tempo já passado, ou talvez não, pois o fadário repete-se.
ResponderEliminarPresumo, o João blábláblá, enquanto havia espaço, depois a casa foi-se apoucando tal como a conversa, ou seja, para quê se as botas se desgastaram num ai, o livro folheado tantas vezes, numa rotina que lhe foi desvanecendo as letras, até a capa já em fanicos... E o berreiro das garotas desconcentraram-no das obrigações conjugais. Ela? Tarde piou, ainda assim vingou-se uma vez que o emalou em devido tempo. Agora bordados, chapéu!
Beijo, Amiga ME.
Os teus comentários são verdadeiros posts! E muito bonitos!
EliminarObrigada, Agostinho!
Beijinho
Que história sensível, contada com tanta delicadeza. Uma história que se repete com tantas mulheres que gastam os sonhos nos ardis da entrega...
ResponderEliminarUma boa semana com muita saúde.
Um beijo.
Entregas pouco apreciadas, tantas vezes!
EliminarBeijinho e obrigada, Graça.
não é retorno, nem repetição
ResponderEliminarcada dia é um dia que se faz, só a ideia de glória ou de culpa, nossa ou dos outros o podem diminuir
A culpa, essa castigadora...
EliminarBeijinho, Luís.
Quantas Ondinas perdidas de si e dis outros existem...
ResponderEliminarBjinho
Muitas se escondem por trás de sorrisos forjados.
ResponderEliminarBeijinho, GM.
Maria, faço minhas estas tuas palavras:
ResponderEliminar"Muitas se escondem por trás de sorrisos forjados."
Bom fim de semana:)
Imagino que sim, que sejam muitas.
EliminarBeijinho, Legionário, e feliz Junho. :)
Fantástico.
ResponderEliminarA capacidade de síntese dizendo tanto é de louvar.
Esse final tem duas interpretações, a meu ver. Ambas fazem todo o sentido.