segunda-feira, junho 03, 2019

Regresso


(Paul Klee)

A igreja afigurava-se-lhe bem mais pequena do que nas suas lembranças. Havia um cheiro doce e intenso a flores murchas embora as do altar da Nossa Senhora de Fátima se mostrassem exuberantes de frescura, talvez porque fosse Maio.
Pesava-lhe a memória da sua infância, menina de vestido rodado e laçarotes no cabelo loiro em caracóis, encostada à mãe nas longas missas precedidas de terço. Naquele tempo, as senhoras mais abastadas tinham uma cadeira mais confortável, comprada por elas, e era a menina que se sentava nela, só dando lugar à mãe aquando do acto de ajoelhar.
Espantou-se ao verificar que ainda havia divisão entre homens e mulheres. Tal como no passado, os homens ocupavam os lugares próximos do altar-mor, num nível superior, separado por um degrau, enquanto as mulheres, as crianças e alguns, poucos, homens mais jovens ficavam no nível inferior.
Maria Antónia sentara-se no primeiro banco do nível inferior, como lhe competia,  imersa na dor da perda recente. O silêncio da espera pelo padre deixava ouvir a queda de uma ou outra rosa acastanhada pelo apodrecimento e do voo de uma mosca varejeira que entrara pelas portas abertas de par em par.
Estremecia a cada cara reconhecida. A Zefa do Marinho, com quem brincara às casinhas no recanto da despensa; o Sr. Adelino, que lhe pegara tantas vezes ao colo para melhor chegar às cerejas rubras do quintal; a Zita, a quem tinha ouvido falar pela primeira vez de beijos na boca, ...
Não se conteve e chorou. Desabaram todas as lágrimas que tinha sufocado há dias e sentiu que, de certa forma, regressara a casa.


23 comentários:

  1. Olha lá, e a Maria Antónia não tem um dia descansado?
    Em casa a beber chá e a ver Game of Thrones.

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    1. A Maria Antónia tem que ir à bruxa!

      Beijinhos,Luís :)

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  2. Nada como a missa de domingo
    para reconhecer comportamentos
    sociais, hábitos e tradições
    e reconstituir a memória

    todos os regressos despertam emoções

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    1. Parece que as memórias nos engolem.

      Beijinhos, Rogério :)

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  3. E este seu regresso é mais uma maravilha na escrita.

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  4. Bem vinda. Gostei da publicação. Linda imagem:))

    Hoje:-Por vezes existem dias sem cor.

    Bjos
    Votos de uma óptima terça - Feira.

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  5. Maria, Maria, Agostinho sou eu, pelo menos enquanto não chega o mês.
    Tinha vindo aqui e pressentiste-o? é saí mudo nem sei porquoi.
    A prosa é uma delícia. Em que igreja se deu o flashback? talqualmente a minha! Na infância havia essa hierarquia de valores na arquitectura da assembleia. E cadeiras e lugares nos bancos com direitos pouco cristãos. Agora não sei que não vou lá.
    Beijo.

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    1. Perdoa-me o lapso. Já corrigi! :)
      As igrejas de aldeia deviam ser todas iguais. Espanto-me é que não tenham mudado.
      Beijinho e bom final de feriado, Agostinho :)

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  6. Gosto muito da narrativa com memórias da infância. Foi um gosto enorme ler-te.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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    1. Um mundo tão distante e tão próximo, em simultâneo.
      Muito obrigada, Graça!

      Beijo

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  7. Há muito passado neste Portugal do presente.

    Beijo, KK :)

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  8. Regressar pelo pior dos motivos... mas a casa, é sempre a casa.
    muito belo, Tutu

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    1. A tristeza ensombra tudo...

      Obrigada, Manel! Muito!

      Beijocas

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  9. Tudo nos vem à memória e tudo muda, menos a Igreja.....

    Bom fim de semana

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    1. Uma longa e pesada herança, a da Igreja.

      Beijinhos, São.

      Bom Domingo!

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  10. Quantas memórias despertam os regressos! Às vezes memórias tristes!
    Bjo e bom fds

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  11. Agridoces, as memórias, Lua Azul!

    Beijo e bom Domingo.

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  12. Você me autorizou e eu estou lendo agora.
    Belo texto... só se regressa à casa, quando se choram as lembranças que ficaram na esteira do tempo!!!

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    1. PDR, o facto de ter um blogue erótico não o torna indesejável! :)
      Obrigada, os regressos podem ser dolorosos, mas também estão cheios de memórias ternas.

      Beijinhos

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