Augusta subia a ladeira íngreme a custo, a mão direita a
afagar os rins por cima da blusa de seda bege.
Entre dentes, desfiava um rol de pragas.
“Rais partam as malditas pedras mais quem se lembrou de mandar
calcetar tão mal o diabo do caminho! Havia de se estrepar todinho cada vez que aqui
passasse!”
Chegada à eira da casa grande, parou um pouco para
regularizar a respiração e limpar o rosto suado com um lenço da mão. O lenço,
de cambraia branca bordada, não merecia tal destino, mas do bolso daquela saia plissada preta, que habitualmente usava para ir à missa, só se esperava saíssem coisas finas.
Bateu palmas, enquanto gritava: “Oh, da casa! Oh, da casa!”
Bem que sabia haver uma campainha, toda moderna, na porta
verde, ao cimo das escadas. Mas se esperavam que subisse mais uma vintena de
degraus depois da ladeira, deviam estar doidos!
Ouviu uma voz respondendo, lá de dentro, “Já vai! Já vai,
senhora!”
Uma cabeça de homem, ornada de farta e desordenada
cabeleira branca, assomou à porta, apenas entreaberta.
“Augusta! És mesmo tu?” Havia espanto nas palavras.
“Sou eu, pois, seu velho covarde! Vim dizer-te que podes
morrer em paz que eu, Augusta da Conceição, perdoo-te teres-me abandonado no
altar, naquele dia 15 de Agosto de 1960!”
E foi assim, sem mais, que Augusta deu o recado e, de
imediato, voltou a descer por onde viera, repetindo baixinho “Pronto! Pronto!
Agora podemos morrer os dois descansados!”
A aldeia acordou, no dia seguinte, com o toque a finados dos sinos. Augusta da Conceição e António Carriço tinham morrido durante a noite. Os sinos que não tinham repicado pelo seu casamento, faziam-no agora, que a morte os juntara.
(Hélène Grimaud - Mozart: Piano Concerto No. 23: II. Adagio)
fez-me recordar Crónica de uma Morte Anunciada.
ResponderEliminarBjs, boa semana
Oh, Pedro, que exagerado!
EliminarMuito obrigada!
Beijinhos :)
Partiram os dois rumo a um amor adiado… Muito belo!
ResponderEliminarUma boa semana.
Um beijo.
Mistério...
Eliminarbeijinhos e obrigada, Graça! :)
Um texto tão bom e comovente... :(
ResponderEliminarHoje :- Melancolia da lágrima
Bjos
Votos de uma óptima Segunda - Feira
Grata, Larissa!
EliminarBeijo :)
Quem sabe o destino guardou a morte de ambos para que vivessem um casamento espiritual no outro lado???
ResponderEliminarBelo texto.... bela história!
Amei!
Quem sabe, PDR!
EliminarObrigada!
Beijinhos :)
Que mulher!
ResponderEliminarNão há nada como acertar as contas com o passado antes de partir... e aquilo estava-lhe atravessado na garganta, penso eu.
Bela e comovente história.
Tarde feliz, Maria!
🍃🍁🍃
🍁🍁
São autumn leaves a mais, foi um "lápis" :(
EliminarSorry, Maria.
Palavras entaladas no peito pesam. Augusta queria paz!
Eliminarautumn leaves são sempre bonitas, ora! :)
Beijo
Gostei imenso do teu texto !!! ... do Mozart de pintura também !
ResponderEliminarObrigada, Ricardo!
EliminarBeijinhos :)
... e se tivéssemos um barco seria inútil
ResponderEliminarSerá?
EliminarBeijinho, MA :)
Tem talento, Senhores, esta Maria.
ResponderEliminarQue deliciosa prosa prantaste.
Foi um descanso a Augusta ter ido fazer as contas, apesar do custoso que foi decidi-lo, e dos "rais parta" do empedrado... A praga que rogara ao canalha teria sido muito azeda, tenebrosa.
Ficou aliviada, levezinha como uma pluma, mais leve do que a terra. E o Carriço, comutada a pena, quem sabe se no céu não a irá desafiar...
Beijo.
Sabes, Agostinho, não é talento, é conhecimento de vida(s). Augustas e Carriços abundam neste nosso Portugal profundo.
EliminarObrigada, muito, pelas tuas sempre encorajadoras palavras!
Beijinho :)
Perdoar significa um certo estado de paz...e foi isso que aconteceu com a Augusta.
ResponderEliminarOlá, Maria:)
Acho que foi isso mesmo, Legionário!
EliminarBeijinhos :)
Ah, ah...são mesmo assim as pessoas. A minha mãe fez questão de dizer ao meu pai, quando este estava prestes a morrer, que o perdoava por a ter "abandonado" com quatro filhos, contudo, não me lembro dele lhe ter pedido tal perdão:)
ResponderEliminar~CC~
Pois são, CC! Pode ir o pobre sem esmola, mas nunca sem resposta!
EliminarBeijinhos :)