quinta-feira, janeiro 14, 2021

A Leitora

(Francine Van Hove. #drawinganatomyandart)

Maria da Luz começara a juntar as letras com três anos. Um dia, sentada à mesa, enquanto os pais se entretinham a falar de como fora o seu dia, exclamou: “Aceite virgem Galo!”

A mãe riu-se e perguntou “– Oh, Milú, o que é isso? Azeite?”

“Ali, mãe! Diz ali, na garrafa de aceite!”, ripostou a criaturinha de 95 centímetros e caracóis loiros, de dedo espetado para o rótulo da garrafa que repousava na mesa, junto do seu prato.

“Oh, Milú, lê aqui isto!”, pediu o pai, mostrando-lhe a impressão numa caneta que retirou do bolso da camisa.

“Escola de Ano Bom”, leu a pequenina.

Nessa noite, sentada na cama entre o pai e a mãe, leu uma página inteirinha do Capuchinho Vermelho.



A cabeça ornada por uma longa cabeleira loira parecia não se mover há horas. Na ampla sala da biblioteca, apenas aquela mulher lia com tanta concentração. O seu registo era, de longe, aquele em que mais entradas constavam. Havia romances, biografias, poesia, História e, no início, contos de fadas e de aventuras. Milhares de livros, milhares de milhões de palavras!

Só na hora de encerrar, a bibliotecária, estranhando a demora da leitora, se aproximou, verificando que os cabelos loiros se espalhavam pela mesa, cabeça e mãos caídas, o livro derradeiro a amparar-lhe a face pálida.

Consta que o coração lhe quis dar um fim naquela sala. Diz-se, também, que houve um ruído imenso de palavras sussurradas quando lançaram as suas cinzas no jardim da Biblioteca, levantando uma revoada de pássaros, numa desgarrada de chilreios.

 

(Camille Thomas – Gluck:Dance of the Blessed Spirits)

12 comentários:

  1. Nunca me vi
    a mim
    pensando em cenários
    para a minha morte
    mas ... numa biblioteca
    não seria má ideia

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    1. Concordo, Rogério! Haja bibliotecas e leitores!

      Beijinhos :)

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  2. Maria

    Original e bela, a história da menina (ou meninas?)!
    Gostei muito da música, que ouvi pela primeira vez!
    Obrigado

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  3. Um imaginário poético com livros . Posso imaginar os caracóis louros a espalharem-se pela mesa. Quase que posso ouvir o sussurrar das palavras... Lindíssimo texto!
    Uma boa semana com muita saúde.
    Um beijo.

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    1. Obrigada, Graça, muito!
      Quem ama as palavras gosta de histórias com elas. :)

      Beijo e saúde para ti, também! :)

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  4. Numa altura em que tanto se fala de morte, essa, pelo menos, seria mais serena.
    Beijinho

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  5. Uma morte, assim, tão poética... Até afasta o receio que se tem dela.

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    1. Haja mortes assim. Acho que tu escreverias uma com mar ao fundo.

      Beijo, Luísa :)

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