quarta-feira, junho 21, 2017

Parecenças I

(unknown painter)

Foi pelas quinze horas, a canícula abafava até os miados dos gatos, que a notícia da morte do Joãozinho Villar chegou. Veio escrita a tinta preta, numa letra trémula, mas elegante, gravada num cartão. Mariana, a empregada (criada, como ainda lhe chamam os patrões), calcorreara o caminho íngreme que distava da casa grande dos Cunha e Villar, ataviada no uniforme preto de cetim, aventalinho branco pespontado a renda e toucado igualmente alvo no cocuruto da cabeça ornamentada com uma trança enrolada de cabelos negros. "É para entregar ao Sr. Engenheiro!", dissera, já pronta a seguir caminho com uma considerável quantidade de cartões na mão.
O Engenheiro Castro leu o cartão com um franzir de testa, ainda enrolado no seu roupão azul escuro com um belo dragão bordado a dourado, comprado nos tempos áureos das viagens ao Oriente. Ah! Bons tempos, aqueles em que os pais desembolsavam quantias avultadas  para educar o seu menino para uma visão eclética e mundana!
Vestiu o fato preto, camisa branca, gravata igualmente preta. Olhou-se ao espelho com ar satisfeito. O cabelo ainda forte e ondulado penteado para trás, o bigode levemente retorcido nas pontas que o fazia parecer-se extraordinariamente com o bisavô Cunha e Castro. Suspirou, e saiu para a torreira do sol, encaminhando-se para o velório.
Cruzado o portão da casa dos Villares, não lhe foi difícil perceber onde a família velava o falecido. A porta verde da sala de visitas do rés-do-chão, aberta de par em par, deixava que se ouvisse o ruído abafado do terço, rezado em tom monótono por vozes femininas.
Franqueou a entrada. Lá estava o Joãozinho, enfiado num casaco azul-marinho de trespasse, camisa azul clara, gravata azul com pequenos brasões amarelos e calças cinzentas. Tal e qual os uniformes da banda de música! A barriga proeminente quase rebentava os botões dourados do casaco. Mas... agora reparava, o bigode era igualzinho ao seu e o cabelo... Meu Deus, o cabelo! Forte, ondulado, penteado para trás! Foi cumprimentar as senhoras da casa. "Tia, que desgraça! Foi tão inesperado! Prima, lamentável!" E, de sopetão, atiram-lhe: "Mas que parecido estás com ele! Até comentámos quando entraste! Credo! Não o soubéssemos cadáver, entrava agora pela porta da frente!"
Ficou uns minutos à conversa, contrariado, nervoso. Pensava entretanto: Em chegando a casa rapo o bigode e penteio o cabelo para o lado! Parecido com o morto! Só essa me faltava! Semelhante ao parolo com vestimenta de músico da banda da terra!


12 comentários:

  1. Where do you find the art of unknown artists, and incredible music like Lisa Gerrard?
    You are my source, your are my fountain.
    I love it all.
    😘 xx

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    1. Sometimes, I take a few of my time to search the net for things I like. :)
      Thank you, Rick!

      Kisses :)

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  2. Depois de um tempo ausente,eis que volto a 'Vez da Maria '_ que bonito título!
    Maria é um nome limpo claro sublime Amo muito.
    O texto,maravilhoso! a descrição do Engenheiro faz-me ve-lo adentrando a sala do velório crente que estava abafando e as 'parecenças'lhe pregam uma peça rs Muito bom Maria
    Deixo um abraço e um carinho

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  3. Olá Maria!
    Excelente texto.
    Obrigada por partilhares.
    Bjs.

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  4. Um texto com uma narrativa excelente, que nos pós ao lado das personagens.
    Um beijo.

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  5. Daqui pergunto, não haverá parentesco entre o engenheiro e o músico defunto?
    Quem sabe se a Maria, lá mais para a frente, não nos irá presentear com um epísódio que aclare dúvidas legítimas. Parecenças e coincidências...
    Belo texto. Como sempre.

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  6. Gostei imenso de todos os detalhes, pois é Maria, por vezes as parecenças não nos calham nada bem:))

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  7. não és normal
    a escrever coisas com mais que duas linhas!

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  8. Não pude rir-me. É um conto cômico de não rir, mas de admirar. Percebi-me literalmente boquiaberto e permaneço ainda em estado de fruição diante de uma obra que, fosse música poderia confundir-se com uma valsa de Chopin, sendo escrito remete-me aos mais poéticos momentos de Eça de Queiroz. Parabéns.

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