A vez da Maria
As palavras ditas de ti são as mais bonitas.
quinta-feira, abril 25, 2024
Cravo
quinta-feira, abril 18, 2024
Siêncio
Houve um tempo de silêncio. Não se sabe
como se perderam as palavras, mas fora de repente. A rapariga apaixonada não
foi capaz de dizer do seu amor, o homem da mercearia deixou de enunciar as
maravilhosas especiarias chegadas de Marrocos, nas escolas não mais se ouviram
algarviadas de meninos.
Foram os pássaros que, estranhando a
mudez, iniciaram a época dos gorjeios permanentes. Dia e noite, excediam-se em
melodias extraordinárias, como que a lembrar da beleza da voz.
Primeiro, apenas as criaturas aladas se fizeram ouvir (diz-se que eram anjos disfarçados de pássaros), mas ao longo dos dias e noites, pouco a pouco, começaram as palavras ditas em surdina pelos amantes, logo as crianças se apressaram a desenrolar pequenas frases em reposta aos incentivos dos pais e, não tardou nada a ser um novo tempo, o tempo das palavras ditas.
(Something Not Right - Glen Alfred)
quinta-feira, março 28, 2024
Cicatrizes
Desde pequena
que tinha aquele hábito. Fechava-se no quarto, persianas corridas, a ver no
escuro.
Menina. O que
tanto vês no escuro? Perguntava-lhe a mãe.
Tanta coisa!
Tudo o que eu quiser!
Era no escuro
que sentia o corpo mais vivo. Ontem, as veias a latejarem de sangue jovem e
quente. Hoje, a evidência da idade nas cicatrizes que lhe marcam a pele.
Quedam-se-lhe as
mãos no baixo ventre, onde uma une as virilhas, logo se encontrando com duas
mais pequenas, simétricas, um pouco abaixo. Não são as únicas testemunhas da
frieza do bisturi. Um pulso, um pé… E ainda as marcas de quedas nos joelhos.
Há ainda uma, a
mais recôndita e importante de todas, irregular, por vezes dolorosa, traço
primeiro de uma vida a rasgar caminho, portal para o mundo de todas as dores e
todos os prazeres.
segunda-feira, fevereiro 19, 2024
Perda
Tinha 18 anos quando João morrera. Não sabia ainda da dor da perda física e de como se estranhava, atingindo o peito como uma bala explosiva, causadora de ferimento maior.
Fora logo pela manhã. Tinha acabado de se sentar na cozinha, o café com leite quente, na chávena de flores da Vó Zira, ainda intocado. A Tia Manecas dizia palavras cinzentas na manhã clara e nada as podia fazer voltar atrás!
Demorou a acreditar na mensageira de tamanha desgraça. Ainda Domingo o calor das mãos dele, do João, do seu João, tinha aquecido as suas, subrepticiamente, no final da missa. Nem um beijo sequer haviam trocado.
Tinha 18 anos e julgou nunca mais amar.
domingo, dezembro 31, 2023
Luz
Que a Luz prevaleça e o Homem se deixe inundar dela!
Procuro uma alegria
uma mala vazia
do final de ano
e eis que tenho na mão
- flor do cotidiano -
é vôo de um pássaro
é uma canção.
Carlos Drummond de Andrade
quinta-feira, dezembro 28, 2023
Útero
Maria Antónia deu por si a mudar por dentro. Tinha dores (de crescimento?) pelo corpo inteiro. Até para dormir se estranhou. Ela, que sempre encontrara consolo a adormecer de barriga para baixo, uma perna encolhida e outra esticada (tal e qual o pai), mãos debaixo da almofada de cetim, viu-se em posição fetal, enroscada em si mesma, evitando mexer-se um milímetro.
Atacavam-na lembranças de anos remotos, criança viva em correrias, gargalhadas a ecoarem na casa grande e no quintal. A mãe a manejar com destreza a agulha de croché, dando vida a colchas que dizia irem, um dia, cobrir as camas de sua casa. Sua? Pois se aquela era a sua casa!!!
O pai não costumava falar no futuro, à excepção da poupança! Sempre a ensinara que não podia deixar a luz acesa num aposento vazio ou que a marmelada a secar na janela era para comer quando houvesse uma ocasião especial (a lembrar-lhe da vez em que ela, matreira e ingénua, fora comendo o conteúdo de uma tigela, deixando o redondo da "capa" dura a disfarçar).
Naquele dia de Inverno, deixou-se ficar no quente dos lençóis, arredondou-se o mais possível, como que a abraçar-se, e desnasceu.