domingo, novembro 23, 2025

Dança

 


Há muito tempo que Maria Clara não sonhava. Não sabia se algum caçador de sonhos tinha passado pelo seu coração, ou se este se esvaziara com o tanto que sonhara antes.

Chamava o sono com doçura, na esperança de que lhe trouxesse histórias mágicas, onde se embalasse, favorecendo-lhe o decorrer dos dias, tão iguais e desimportantes.

Um dia, viu um anúncio de uma escola de dança. Quem sabe dançar não os traria de volta?

E foi assim que Maria Clara, embalada em braços desconhecidos, começou a sonhar de novo.


                             Música: Gustavo Dudamel, Danzón N.º 2


quarta-feira, novembro 12, 2025

“Pelos nossos corações passa a linha de fogo”

 

(lee jeong lok)

 

Ideia 

Os teus pensamentos

fogem

com asas negras

na obscuridade

silenciosa

morcegos

de uma gruta

profunda

e sem eco.

Dagur af degi, 1998

In “Pelos nossos corações passa a linha de fogo”, Antologia de poesia islandesa.

 

 

As minhas ideias

fluem

plenas de luz

na claridade

melodiosa

de um mar

profundo

e clamoroso.

Glosa de Maria Eu, 12/11/2025

 

Música: Ay! este azul - Cabral. 


quinta-feira, agosto 14, 2025

Verão 2

 O vento apresentou-se seco e forte, despenteando as árvores e trazendo palavras proferidas em conversas diversas.

"Qual menina?"

"Ora bolas..."

"Cinco euros..."

"Traz mais pão..."

"Olha o canito a roer o chinelo..."

Nada como sentar-se no terraço em Agosto. Calor, vento, palavras soltas a construirem frases em vozes de outrem.

Uma borboleta escapou de uma página do livro da Clarinha, atravessou a janela entraberta e esvoaçou, elegante e etérea, desaparecendo no campo pejado de margaridas.


terça-feira, agosto 12, 2025

Verão 1

 E de repente era Agosto, num calor abafado de sol à mistura com afectos. 

Entram sonhos pelas portadas abertas e há borboletas, unicórnios e dinossauros a espreitar dos livros espalhados pela casa grande. 

Os pássaros rivalizam em cantos com os grilos, enquanto os cachos de uvas amadurecem na vinha sobranceira, como que numa mensagem de vida à nespreira moribunda, mas com anos de histórias para contar.

segunda-feira, março 31, 2025

A primeira dor

(imagem daqui)

Teria à volta de cinco anos quando experimentou a dor. À época, não sabia o que significava aquele aperto no peito a subir aos olhos e a transformar-se em lágrimas.

Doíam-lhe os ouvidos da notícia.  A Lina morreu. 

Como assim, morreu? Ainda ontem brincara com ela às cozinheiras, a amassar bolinhos e a fazer sumo de maçã! E morrer era para sempre? Ora, devia ser uma doença qualquer, essa tal de morte!


Só aquando da ausência permanente entendeu...



(E. Grieg: Elegie (Elegy), Op. 47 no. 7)

quarta-feira, março 26, 2025

Era uma vez um rapaz

 

(imagem daqui)


Era uma vez um rapaz. E o rapaz crescera a olhos vistos, correndo contra o vento, num afã de viver as aventuras de piratas por mares nunca dantes navegados. Fazia da praia esconderijo de tesouros, desde paus em cruz (espadas afiadas nas lutas), até pedaços coloridos de vidro (joias magníficas que refulgiam à luz do sol).

Dizia que, certa vez, uma sereia viera ao seu encontro, encantada pelo brilho dessas joias e, quando lhas ofereceu, o beijou intensamente, logo desaparecendo nas ondas do mar.

Já homem, sem saber porquê, havia sempre pedaços de vidro, à mistura com conchas, nos bolsos dos seus casacos.



(Jack Garratt - Breathe Life)