segunda-feira, fevereiro 03, 2025

(Des)encontro

 


Agosto. O sol queima o milho nos campos e, do rio, evola-se uma névoa de água, que logo desaparece. As cigarras, enlouquecidas pelo calor, cantam à desgarrada, numa melodia desafinada, desafiando os grilos que se lhes juntam. Na aldeia, as janelas estão fechadas e as cortinas corridas. Nem vivalma nos caminhos.
Na sala verde, Maria Antónia dormita no sofá, um livro de poesia aberto no colo. Não adivinha que João Maria, indiferente aos 38 graus que se fazem sentir, se dirige a sua casa.
 
O som da campainha ecoa repetidamente. A porta abre-se, finalmente, e um Afonso sorridente pergunta: Em que posso ajudar?
João Maria, hesitante, pergunta por Maria Antónia.
Oh, deve ter adormecido! Vou chamá-la!
Que não, disse. Voltaria um outro dia, quando estivesse mais fresco.
 
De regresso ao caminho escaldante, ouve uma voz cristalina chamá-lo. A rapariga morena, arquejante pela pequena corrida, segura-o pelo braço.
Então, João, já não te lembras de mim?
Teresa?
Sim, homem! E repenica-lhe dois ruidosos beijos nas bochechas suadas.

(Maria Antónia? Quem é Maria Antónia?)
 


domingo, janeiro 19, 2025

João Maria

 

(imagem daqui)

Sentado num banco do Jardin du Luxembourg, João Maria observa um grupo de homens a jogar quilles de huit, enquanto fuma um cigarro.

Está sol e as árvores verdejantes albergam pássaros irrequietos e gorjeadores. 

Sem mais nem porquê, veio-lhe à lembrança a imagem de Maria Antónia, sentada numa poltrona em frente a si, fazendo-o sorrir, enlevado.

Dezoito anos! Nada fazia prever que teria que se apressar, noite dentro, a reunir alguns parcos pertences e atravessar a fronteira Espanhola, em direcção a França. Uma denúncia anónima alertara a PIDE para a sua participação em reuniões clandestinas e na distribuição de panfletos contra o regime.


Quem sabe, agora que planeia voltar por uns dias, a possa rever?



(Guillaume Poncelet-88)

quinta-feira, janeiro 02, 2025

Novo ano para Maria Antónia


 Maria Antónia bem que ouvia o ruído da rua. Automóveis, conversas numa misturada infinita, cães a ladrar…

Remexeu-se, voltou-se a remexer, e, junto com o barulho,  entrou-lhe o passado pela janela!

João Maria, melena à Beatles, sorria-lhe da poltrona da sala verde, na casa de sua mãe. Era Verão! Também havia ruído, mas nada a podia perturbar quando João Maria sorria.

Dezasseis anos! Um mundo inteiro por descobrir! Nada fazia prever que nunca mais veria o rapaz. Soube que partira para França com os pais, pela calada da noite, fugindo de um mandado de captura por perturbação da ordem pública.

Nunca mais regressaram, nem com a revolução de Abril.

Dizia-se que viviam em Paris, num apartamento modesto, situado num cul de sac, junto à Igreja de Saint Sulpice.

Quanto a ela, Maria Antónia, deixou-se de rapazes de melena e acabou por namorar uns quantos de cabelo rebelde e sorriso maroto. Afinal, havia um mundo por descobrir, pensou, aconchegando-se no peito de Afonso.



 (Clair de Lune por Maria João Pires)

domingo, setembro 29, 2024

Foi o mar

 

                                                       ( J.M.W. Turner)

A rapariga vestida de azul céu caminhava junto ao mar, sandálias brancas na mão, deixando um caminho de pegadas na areia molhada.

Sem que nada o fizesse prever, surgiu um trilho de outras pegadas, maiores e mais vincadas, ao lado das dela.

Soube, mais tarde, que, nessa manhã, perdera o homem amado para o mar.

Nessa noite, não houve lágrimas e, na manhã seguinte, a sua cama estava húmida, com um rasto de areia e algas. 



segunda-feira, agosto 05, 2024

Joana

 


Era sempre à sexta feira. Joana saía de casa ainda a aldeia toda dormia, vestida com roupas coloridas e cabelo primorosamente penteado em caracóis que lhe emolduravam o rosto precocemente envelhecido.

Foi num desses dias que a vizinha do lado, acometida de uma falta de ar insuportável, assomou à janela e a viu, assim arranjada, em passo apressado. Estranhou-lhe o preparo e, sem pudor, logo segredava com as mulheres que lhe faziam companhia no café da manhã o colorido do figurino de Joana e a hora deveras matinal a que saíra. De imediato se levantaram as mais variadas hipóteses. Teria ela um namorado secreto? Iria a algum evento na vila mais próxima?

Escusado será dizer que, a partir daí, os olhares curiosos começaram a ocupar as janelas bem cedo, por detrás das cortinas brancas, num concurso de espionagem, para ver quem mais rapidamente descobria o destino de Joana.

Era sempre à sexta feira. Joana arranjava-se como nos tempos de adolescente. Sentia-se um pouco ridícula, por isso saía bem cedo. Por outro lado, assomava-lhe um sorriso ao rosto enrugado pensando na alegria da mãe quando a visse chegar ao lar. Sabia que era assim que ela a recordava e reconhecia.


(Zeca Afonso - Canção de Embalar)

segunda-feira, julho 22, 2024

Tempo de flores

 


Era um tempo de flores. Não daquelas que enchiam de cor os canteiros do jardim da casa da sua mãe, nem tampouco das que rompiam nos lugares mais imprevistos, como os muros dos caminhos da aldeia onde crescera. Essas eram sempre perfumadas, algumas, até, intoxicantes, de tão intenso o perfume.

Das que falo, as deste tempo, veem em ramos. Lindas, perfeitas, nem um pé mais torcido, ou uma pétala com o traço característico de um caminho feito pela pequena lagarta verde.

Cumprem o seu propósito, seja de amor ou dor, sempre iguais, sem que a ocasião lhes desmanche a perfeição quase como se fossem artificiais.

 

(Cabaret de Luxe - Le Temps des Fleurs)